Georges Bernanos faz parte de um grupo de escritores católicos franceses que, na primeira metade do século XX, tentaram fazer frente, no campo intelectual, à influência, nascida no século XIX, da filosofia positivista, cuja metafísica se reduz, em última análise, ao que é dado pela experiência sensorial, origem primeira da ciência e da descrição da realidade, fonte de negação de toda a transcendência. O Journal d'un curé de campagne (Diário de um pároco de aldeia, na tradução portuguesa) é uma das obras mais importantes desse movimento de reacção à filosofia positiva e ao ateísmo crescente em França e no mundo ocidental.
Não se pense, contudo, que estamos perante um livro apologético, uma espécie de panfleto militante de cariz católico. Pelo contrário. O romance, publicado em 1936, tem por centro a acção de um jovem padre católico que inicia o seu pastorado em Ambricourt, uma aldeia do norte de França. O diário tem a função especular de tornar manifestos à consciência do seu autor as incidências e acidentes do seu trabalho enquanto sacerdote. Aquilo que poderia ser pensado como um texto anti-moderno de extracção católica, pelo facto de utilizar o diário como recurso narrativo literário e, do ponto de vista da personagem do padre, como instrumento de reflexão da sua prática, mostra-se claramente como um romance moderno e inscrito na ambiência cultural da modernidade.
O diário do padre de Ambricourt liga o texto de Bernanos à tradição francesa da modernidade e à sua figura seminal, o filósofo René Descartes. Como o cogito cartesiano, o diário – que não é outra coisa senão um cogito desenvolvido e que abarca aquilo que o cogito de Descartes pôs de lado – é marca de uma singularidade, de um indivíduo que se destaca da sua casta (o clero) e individualiza a sua acção pastoral através da narração dos episódios que a compõem. Por outro lado, esse mesmo diário é o sinal da reflexividade que distingue os tempos modernos dos que lhes foram anteriores. O pároco, como qualquer homem moderno, não vive na consciência imediata de si mesmo, mas precisa da reflexão diarística para se constituir e saber enquanto subjectividade.
Utilizando uma linguagem muito posterior, a de Michel Foucault, dir-se-á que o diário é um dispositivo de subjectivação, que constitui o jovem padre em sujeito de acção (o seu pastorado na aldeia) e de paixão (entendida esta como sofrimento). A constituição da consciência de si do pároco de Ambricourt é marcada, de forma sub-reptícia, por uma oposição que, nos dias de hoje e para a generalidade dos homens, não é compreensível, a oposição entre a vocação contemplativa dos monges e a vocação activa daquilo a que se poderia chamar clero secular. Um monge vive para a sua própria salvação, e toda a vida contemplativa e de louvor da divindade se inscreve nesse desiderato. A salvação do outro é uma preocupação indirecta. Um pároco, pelo contrário, centra a sua vida na salvação do outro, no pastorear o seu rebanho paroquial, e a sua salvação pessoal é uma preocupação indirecta e derivada do seu objectivo primeiro.
A consciência de si do jovem sacerdote é então moldada por esta opção. Ele é um agente de Deus no mundo com a finalidade de salvar aqueles que estão nesse mundo. Contudo, o mundo é uma matéria resistente e adversa. Sejam os nobres, os burgueses ou o povo, em todos eles há um catolicismo de superfície e uma indiferença, quando não uma negação activa, da mensagem crística. A consciência de si do pároco, alguém que vem dos meios mais pobres mas que é dotado de grande inteligência, cresce no confronto com as outras consciências, com a duplicidade das outras consciências. Um padre que, pela sua vida ascética, pela pobreza que ostenta, pelo aspecto doentioa que nele se manifesta, gera em todos uma reserva, se não mesmo a mais profunda desconfiança. Resistência e desconfiança por parte dos membros da paróquia são elementos nucleares na descoberta das suas possibilidades e da sua capacidade de configurar a sua própria vocação. Todo este conflito com os outros e a sua mundaneidade, um conflito surdo pautado por avanços e recuos, é paralelo com o conflito que a doença abre dentro do si, do seu corpo e da sua consciência. Um câncer de estômago, uma herança de uma família de gente tomada pelo álcool, corrói-o e irá, por fim, conduzi-lo à morte.
O leitor pode interrogar-se sobre qual a verdadeira função do diário, enquanto dispositivo de subjectivação. Será a de pautar as conquistas da consciência de si ou, pelo contrário, marcar as derrotas e a inexorável perda de si? No âmbito do cristianismo, esta questão recebeu desde sempre um tratamento dialéctico ou, pelo menos, em forma de oxímoro. Como se sublinha em Mateus 16:25, “aquele que quiser salvar a sua vida perdê-la-á, e quem quiser perder a sua vida por amor a mim, achá-la-á”. O diário é, então e ao mesmo tempo, o registo da perdição e da salvação de um homem, um homem moderno, colocado entre o missão que lhe foi confiada e a resistência do mundo às injunções e prescrições de Deus. Poder-se-á pensar que um romance como este não faz sentido hoje em dia, pois nem os católicos já são católicos, nem o mundo presta atenção ao que pode dizer a Igreja de Roma e os seus representantes. Na aparência isso é verdade. Mas o problema da conquista da consciência de si e do papel da reflexividade na constituição de cada um de nós enquanto sujeito são questões completamente actuais. Por isso, o romance de Bernanos resistiu à usura do tempo e ainda tem em si força para prender o leitor. É, por certo, um clássico do século XX francês.
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