Quando se lê uma obra, lemo-la sempre a partir de tudo o que
lemos anteriormente. Não há leitura que seja despida de um certo enviesamento
trazido pela nossa história de leitores, para não falar da própria história existencial.
Ao acabar de ler o surpreendente romance A
Vegetariana, da escritora sul-coreana
Han Kang, vencedor do Man Booker
International Prize, de 2016 (edição original na Coreia do Sul em 2007),
perguntei-me que autores me estariam a ajudar a enquadrar a visceralidade da meditação
sobre o desenraizamento do indivíduo trazida pela obra de Han Kang. Acabei por
juntar uma dupla referência. Por um lado, o filósofo francês René Descartes e,
por outro, o escritor checo Franz Kafka e a sua obra A Metamorfose. De facto, A Vegetariana é a descrição da metamorfose
onírica da protagonista, Yŏnghye, em árvore. É aqui que entronca a referência a
Descartes e à impossibilidade que temos de distinguir claramente o estado de vigília
do sonho. Tudo começa com um sonho e acaba como se a própria Yŏnghye tivesse
sido arrastada para dentro de um estado onírico de onde não consegue sair.
A descrição da heroína, feita pelo marido na primeira parte (seria
melhor dizer primeiro andamento) da obra, mostra-nos uma mulher absolutamente
banal, sem qualquer paixão, mas também sem qualquer perturbação. Ele casou com
ela porque, sendo ele também completamente banal e medíocre, ela era a mulher
que lhe convinha. A trivialidade da vida quotidiana é suspensa quando ele a
descobre, uma noite, frente ao frigorífico a despejar todos os produtos de origem
animal. Um sonho terrível atormentou-a de tal maneira que a única saída que
encontrou foi tornar-se irredutivelmente vegetariana. Um sonho expulsa-a da
vida comum e vai expô-la a toda a violência que se esconde na família enquanto
instituição. Culmina com uma tentativa de suicídio e o abandono do marido. A
opção pelo vegetarianismo serve para tornar claro que o casamento era uma
falsificação assim como a família, de onde provinha, tinha as suas raízes na
violência do pai, como se tornou a manifestar no episódio que conduz à
tentativa de suicídio. A violência do real e o desenraizamento existencial abrem
as portas para a transição de Yŏnghye para o mundo da fantasia e para a
dimensão onírica.
A segunda parte da obra gira em torno da obsessão sexual do
marido da irmã de Yŏnghye, por esta. O cunhado é um artista sem sucesso que
trabalha em pequenos vídeos e que procura uma saída para a sua carreira de
artista. O desejo erótico, contaminado pela preocupação estética, é mediado por
uma coreografia de motivos vegetais, fundados na mancha mongólica de Yŏnghye. Quer pintar o corpo da cunhada com flores,
o que ela aceita, e encontrar alguém que, pintado da mesma maneira, contracene
com ela, enquanto ele filma. O escolhido aceita mas quando lhe é pedido para
passar de cenas eróticas simuladas para uma penetração real, recusa. Então
o cunhado tenta fazer amor com Yŏnghye, mas esta não o aceita, pois não se
encontra pintado. Se se pintar com os mesmo motivos vegetais, ela acederá aos
seus desejos. O que acaba por acontecer no apartamento de Yŏnghye. O erotismo e
o sexo carnal já só são possíveis no âmbito vegetal, no abraço de duas plantas. À
recusa da carne como alimento sucede a metamorfose da sexualidade que transita
do âmbito da carne para o domínio vegetal. Descobertos e denunciados pela irmã
de Yŏnghye, são ambos internados num hospício, de onde ele rapidamente sai, mas
onde ela, acentuado o desenraizamento, é sugada para dentro de um mundo onírico
de onde não sairá.
A terceira e última parte torna patente a violência inerente
às instituições psiquiátricas. Esta violência e a atenção da irmã – onde se vai formando a
culpa por ter colocado ali Yŏnghye, talvez para se salvar a si mesma de um tal
destino – são o enquadramento final da metamorfose. A heroína julga-se árvore e
as árvores não comem, apenas são regadas. Ela é agora uma árvores exilada da
floresta. O resultado é a intensificação do estado de anorexia, com a recusa de
toda e qualquer alimentação e as múltiplas tentativas de a forçarem a
alimentar-se, tentativas onde a violência é o eixo central. Incapazes de a
alimentarem, transferem-na para um hospital comum. É na ambulância que a irmã, Inhye,
lhe segreda que tudo o que se tem passado talvez não seja mais do que um sonho.
A impossibilidade cartesiana de distinguir claramente entre
sonho e realidade surge assim como o horizonte de uma metamorfose do self. Não se trata aqui de uma transformação
que permita o acesso a um ponto de vista superior e mais integral sobre si e o
mundo. Como em Kafka trata-se de uma transferência para uma outra ordem de
existência já não humana. No sonho, contrariamente ao lugar comum, dissolve-se
a humanidade, transformando-se o indivíduo num ser vegetal, numa árvore. Esta metamorfose,
porém, é um sintoma terrível das sociedades humanas. Ser árvore é procurar um
enraizamento fundo na terra. É isso que a desenraizada Yŏnghye, perdida no
mundo do sonho, procura. Deste ponto de vista, o romance de Han Kang é uma
meditação, escorada numa metamorfose onírica, sobre o desenraizamento que
grassa nas sociedades modernas, nas sociedades que perderam a ligação com a
tradição e a natureza.