O Duelo, novela de Anton
Tchékhov, tem uma natureza polifónica, resultando a intriga da conjugação das
diversas perspectivas narrativas que ora se confrontam ora se conciliam, em
busca de uma reconciliação final. A obra data de 1891 e coloca em
confronto, numa pequena cidade do Cáucaso, um funcionário público com formação
superior, Ivan Laévski, símbolo da preguiça e da devassidão, e a sua amante,
Nadejda Fiódorovna, uma intelectual volúvel e instável que abandonara o marido
por Laévski, com o zoólogo, von Koren, que transporta os valores iluministas
próprios do terceiro estado. Este confronto é mediado por um médico militar,
Aleksandr Samóilenko, generoso e de origem aristocrática, e por um jovem
diácono em início de carreira eclesiástica, representante da fé e do amor
crístico.
Tchékhov explora o papel do ódio e da traição no processo de
reconhecimento de si e de conversão aos valores socialmente aceites, os valores
da família e do trabalho. A conduta de Laévski e de Fiódorovna não atrai apenas
a má-língua dos meios sociais onde se movem, mas o ódio e o desprezo explícito
do cientista perante a falsidade daquele tipo de existência. O que é uma vida
autêntica? Esta é a interrogação que funda a intriga. O rigor do homem que
busca a verdade, von Koren, a sua exigência de autenticidade, são desafiados
pela falsidade existencial do casal desviante. Que o paladino da autenticidade
e veracidade existenciais humanas seja um zoólogo, isso não significa apenas
cobrir essas exigências com o prestígio da verdade, ideal regulador da praxis científica.
Essa transposição da verdade, presente na construção das taxonomias zoológicas,
para o comportamento humano significa ainda uma subtil ironia acerca da
condição humana e da sua própria verdade.
Esta estratégia irónica de relativização da posição de von Koren é
corroborada por uma confrontação lateral ao conflito central da novela. A
intransigência do cientista perante Laévski surge em confronto com a bonomia e
condescendência de Samóilenko e a caridade, em pleno duelo, do diácono perante
o mesmo Laévski. Esta pluralização de atitudes tem a função de fazer ressaltar
mais claramente a natureza do zoólogo, ao mesmo tempo que sublinha os limites
desse novo mundo que começa a emergir na Rússia, e que triunfara há um século
atrás em França.
A conversão de Laévsky aos ideais do trabalho e da família é mediado
por dois momentos onde a verdade surge como alétheia (ἀλήθεια), isto
é, como desvelamento ou desocultação, para retomar a interpretação do termo
grego feita por Martin Heidegger. No primeiro momento, Laévsky constata o ódio
e o desprezo do zoólogo, o que conduz directamente ao momento agónico da
narrativa, o duelo entre os dois. Essa primeira revelação prepara a segunda,
onde descobre - não por uma informação de terceiros mas porque terceiros o
levam a presenciá-la em acto - a traição da sua amante. Ele que se preparava
para a abandonar, cansado dela, acaba por ter, naquele instante e perante a
verdade da volubilidade dela, uma epifania do seu amor por Nadejda
Fiódorovna.
O duelo surge como um momento de morte e de ressurreição para Laévski.
Von Koren não o mata devido à inopinada e caridosa intervenção do diácono, mas
o facto de Laévsky se ter entregado à morte com coragem acaba por ser o momento
decisivo da sua ressurreição, a qual assenta no reconhecimento de si, na
auto-reconciliação e na reconciliação com os valores socialmente
aceites. Há uma estrutura dialéctica, quase à maneira de Hegel, neste
processo. Ela manifesta-se no papel do negativo - o ódio, a traição e a morte -
na ressurreição de Laévski, através do reconhecimento e da reconciliação.
Manifesta-se ainda no processo de relativização de todos os pontos de vista em
jogo. O próprio rigor moral kantiano - uma moral absoluta e incondicional - de
von Koren é relativizado pelo reconhecimento que este faz do valor de Laévski e
da reconciliação final entre ambos. A moral burguesa que parece sair
vitoriosa é, por seu turno, relativizada pelo sublinhar do ar lastimável,
apesar de reconciliado com o seu destino, que agora Laévski apresenta.
O duelo é a metáfora da dialéctica existencial, onde nenhuma das
posições é verdadeira, fazendo todas elas parte de uma verdade que se desvela,
para o leitor e não para as personagens, na articulação e no confronto entre as
partes. A vida autêntica não era a do primeiro Laévski, nem a do Laévski
reconciliado com o destino, nem a do zoólogo. As vidas privadas são vidas
privadas de verdade, a sua autenticidade é a de serem inautênticas.
"Ninguém conhece a verdade verdadeira", pensava Laévski. De facto,
esta não reside em ninguém mas na vida tumultuosa que, como o turbilhão
infinito de átomos que se entrechocam ao acaso, segundo os antigos atomistas,
lança uns contra os outros, ora em confronto ora em apaziguamento. A polifonia
narrativa foi a estratégia estilística encontrada por Tchékhov para figurar e
configurar esta vida exuberante e a sua dialéctica existencial. Melhor, a
polifonia narrativa foi a estratégia usada por Tchékov para transformar o caos
das paixões humanas numa figuração que pode ser lida como dialéctica.