segunda-feira, 28 de abril de 2025

Marlen Haushofer, A Parede


Publicado em 1963, A Parede é o romance mais conhecido de Marlen Haushofer (1920–1970), escritora austríaca cuja obra explora a solidão, o isolamento e a condição humana perante a fragilidade da existência. A obra é a experimentação literária de um cenário hipotético, uma experiência de pensamento para explorar a condição humana. A protagonista – sem nome na história – está de visita a uma casa de campo de uns primos. À noite, eles saem para ir à aldeia. Quando ela de manhã acorda, depara-se com um cenário inesperado: uma parede transparente e inexpugnável tinha aparecido, separando-a do resto do mundo. Fica isolada, apenas na companhia do cão da família e de alguns animais. Compreende que qualquer coisa se passou do outro lado da parede, de onde a vida terá desaparecido.

Um dos testes que o romance faz está relacionado com a natureza social do homem. Somos seres em relação, diz-se. O romance questiona: e se ficarmos isolados? Se toda a sociabilidade humana desaparecer porque sou apenas um? A parede é uma metáfora para pensar o processo de hiperindividualização por que passava já, nos anos sessenta do século passado, a sociedade ocidental. Essa hiperindividualização significa, na prática, um corte com os outros, mesmo que com eles se conviva socialmente ou até na vida amorosa. O indivíduo, na sua afirmação radical, transporta a parede que o isola de todos os outros, os quais deixam de ter para ele uma existência real. O romance hiperboliza a experiência social de isolamento e torna visível aquilo que o hábito e a vida quotidiana ocultam. A estranha parede que separa a protagonista é o símbolo da parede que torna estranhos, para cada um de nós, qualquer outro ser humano.

A alteração no espaço, a limitação da liberdade de ir para além da parede, devolve, paradoxalmente, à protagonista uma liberdade radical. Toda a convenção social, toda a regra moral, toda a lei jurídica, tudo o que resulta do processo de regulação social, cuja finalidade é limitar as liberdades individuais naquilo que têm de danoso para os outros, desapareceu. Apenas a lei da natureza a limita. Essa experiência de uma liberdade absoluta tem o condão de, ao ver-se livre das regras sociais, a colocar perante os seus limites animais. Ela precisa de sobreviver, de organizar a vida não para e com os outros, mas para si e apenas consigo. Quando se elimina a convenção – que diminui e, por vezes, sufoca a nossa liberdade – o que descobrimos é a pura necessidade. Ela vai ter de aprender a trabalhar a terra, de cuidar da vaca que encontrou, do cão que herdou ou da gata que, na sua independência, usa a sua hospitalidade. O efeito paradoxal do romance é mostrar, sem nunca o afirmar, que a liberdade só existe em sociedade – nessa mesmo que nos coage e nos limita; fora dela, só encontramos a necessidade animal.

Se no romance o espaço se limitou, o tempo sofreu uma metamorfose. Ficar naquela situação e ter de sobreviver significa sair do tempo histórico e entrar num tempo cíclico, o tempo da natureza. O tempo histórico é linear: uma linha que vem do passado em direcção ao futuro, que é preenchida pelos acontecimentos da vida social da humanidade. É essa linearidade que conduz, por necessidade da própria razão humana, a colocar nesse passado um tempo mítico originário e, no futuro, uma qualquer ideia de fim da história. Tudo isso é agora evacuado pelos ritmos da natureza, com as suas épocas de sementeiras e de colheitas, com a sua dinâmica de um eterno retorno das mesmas tarefas. Não há história sem comunidade humana, sem o trágico da acção, sem a disputa interminável entre homens e comunidades.

Esta saída da história e a perda de sentido do calendário põem à protagonista um problema de referenciação temporal. Como se orientará, nesse seu novo mundo, no tempo? Há uma dupla estratégia de referenciação. A primeira é a da já referida ciclicidade da natureza, com os trabalhos necessários para assegurar a sobrevivência, segundo o ritmo das estações. A segunda é a escrita do diário como modalidade de consolidação da memória e de referenciação temporal. O romance é o diário da protagonista, o registo da sua existência enquanto exemplar único de uma espécie que parece ter-se extinguido. Pode pensar-se, na interpretação do romance, a escrita do diário de dois pontos de vista. Por um lado, como um acto de resistência ao desaparecimento da humanidade. Por outro, como o registo dos momentos finais dessa mesma humanidade. O mais plausível é pensar essa escrita dirigida a si mesma como um acto de resistência e um registo de apagamento, uma espécie de objecto que se poderá tornar um monumento, embora não exista ninguém para o ler. Um guia na temporalidade até à hora em que já não haverá qualquer ser que tenha consciência dessa temporalidade.

Mais do que o desaparecimento da sociabilidade humana e o confronto com a necessidade estrita da sobrevivência, numa situação em que os processos de cooperação desapareceram, o romance acaba por reforçar – na experiência do isolamento mais radical – a natureza social dos seres humanos. A protagonista cria uma comunidade com os animais à sua volta. O cão Lince, a vaca Bella, com o seu filho, a gata e as suas ninhadas. A comunidade – o viver com os outros – revela-se assim como inescapável. Desaparecidos os seres humanos, há que encontrar uma nova comunidade, para que a vida continue a ser possível. E é aqui que se revela uma das ideias centrais do livro. Essa comunidade assenta não na utilidade, mas no cuidado. A protagonista cuida dos seus animais não porque lhe sejam úteis, mas para os proteger. Isto permite repensar todo o romance como uma metáfora sobre a necessidade de substituir, nas relações humanas, o ethos da relação utilitária, que isola e coisifica as pessoas, por um ethos do cuidado, por um dever de atenção ao outro, mesmo que esse outro não tenha o rosto que esperamos.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Knut Hamsun, Victoria


Publicado em 1898, Victoria é um pequeno romance de Knut Hamsun com cerca de 120 páginas, na tradução portuguesa, de Carlos Aboim de Brito, para a Cavalo de Ferro. Aparentemente, é mais uma história de amor contrariado. Na verdade, é uma bela e encantada meditação sobre as obscuras forças que superintendem a vida dos homens, e que a uns concedem a felicidade e a outros, a desventura. Isto sem que a conduta moral e até a posição social de  cada um se relacionem com o quinhão de fortuna ou de infortúnio que lhe cabe. Por isso a obra ultrapassa os limites do romance moderno, sem negar essa pertença, para estabelecer laços sólidos com as velhas e tradicionais narrativas míticas. Talvez não se possa falar de amor sem esse recurso ao pensamento mítico e à dimensão encantatória deste.

Não se pense, contudo, que vamos encontrar seres transcendentes a manipular os destinos dos dois apaixonados. O que vemos são as forças sociais, as decisões individuais ou a própria dinâmica biológica a ganharem uma dimensão tal que parecem ser agentes de poderes que ultrapassam a limitada capacidade dos homens. A história gira à volta dos destinos de Victoria, a filha do castelão, uma importante personagem local, e Johannes, o filho do moleiro. Desde crianças que se sentem atraídos um pelo outro. O obstáculo principal não vem tanto da diferença social entre ambos, mas do facto do pai de Victoria se encontrar arruinado. A sua única salvação é o casamento da filha com alguém que possua muito dinheiro e que possa assim contribuir para equilibrar a situação financeira do castelão. E a filha, sentindo ser esse o seu dever moral, condescende com a pretensão paterna.

Os obstáculos centrais à consumação do amor entre os apaixonados – a diferença social e a existência real de um pretendente que satisfaz os anseios do pai de Victoria – acabam por desaparecer. O pretendente morre num acidente de caça, na altura em que é anunciado o noivado. A situação social também se tinha invertido, de algum modo. Victoria é filha de um castelão arruinado e Johannes, que chegou à universidade,  tornou-se num poeta famoso, ainda jovem. Um homem importante que, como tal, chega a ser recebido no Castelo, precisamente no dia em que é anunciado o noivado de Victoria. A inversão da situação social e o desaparecimento dos obstáculos – a morte do pretendente e a posterior morte do próprio castelão – não foram suficientes para que desaparecesse aquilo que desde o início separara os dois jovens.

O que o romance revela, assim, é que as questões sociais, por importantes que sejam, não são em última análise as mais decisivas. Os obstáculos sociais, esses ainda podem ser ultrapassados, ou porque são enfrentados e derrotados ou porque, como no romance, o destino os faz desaparecer. E é neste fazer desaparecer, quase por milagre, dos obstáculos sociais de um amor e, mesmo assim, este não encontrar um caminho para a sua consumação, que está a arte de Knut Hamsun. A eliminação das barreiras não significa a supressão da tensão dramática e a transformação do romance numa espécie de conto de fadas. Outras forças mais inquietantes e mais obscuras cerceiam o desejo e limitam a finita vontade humana.

A realidade é mais ampla do que a mera dimensão social, e mais sombria. O autor sublinha-o sem nunca o afirmar e sublinha-o de várias maneiras. A mais surpreendente é através do contraste. A essa realidade humana umbrosa, contrapõe descrições luminosas da paisagem norueguesa. Não são as paisagens que são em si luminosas, são as descrições que sublinham a beleza dos campos onde se desenrola a infância  das personagens e que são o enquadramento do seu amor, se não mesmo um dos seus detonadores. Esta luz, porém, sublinha a sombra que se projecta nos destinos de Victoria e de Johannes, gerando um efeito de encantamento mítico, que o leitor sente na leitura de uma história aparentemente banal e de leitura fácil, mas que é tecida por um complexo e difícil jogo narrativo, que o autor tem o condão de esconder para que tudo pareça transparente ao leitor. Uma pequena obra prima.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Guedes de Amorim, Morfina

Publicado em 1932, o romance Morfina, de António Guedes de Amorim, é uma incursão naturalista para exploração de uma patologia social, a dependência de drogas, emergente não em situações sociais degradas das classes populares, mas no mundo artístico. A estratégia narrativa, ao manifestar um conjunto de valores morais negativos, acaba por sublinhar, como contraposição, um outro conjunto de valores que estão em processo de consolidação, depois dos loucos anos vinte e do fim da primeiro República, com a chegada ao poder da coligação de forças conservadoras e reaccionárias que suportam Oliveira Salazar. O que a narrativa põe em jogo é a oposição do vício e da virtude, sendo o primeiro a emanação das opções individuais e a segunda uma força proveniente da família tradicional e provinciana, com os seus laços de solidariedade e de protecção aos seus membros.

O romance centra-se num talentoso pintor, Pedro António, que troca a tradição familiar por uma aventura no campo das artes e da vida lisboeta. Esse talento, reconhecido e apreciado, gera, porém, um conjunto de forças antagónicas que o vão tentar. É em primeiro lugar um romance que explora dois temas centrais da cultura judaico-cristã, os da tentação e da queda. A tentação, tal como na narrativa bíblica, surge através de uma Eva, neste caso de uma francesa, Jeanette Holbach, em aparência mulher, mas na verdade filha de Hugo Holbach, um homem de negócios que parece interessar-se pelos quadros do pintor. Contudo, Holbach é um negociante de drogas e a filha uma angariadora de clientes.

É a tentação erótica representada por Jeanette que conduz o pintor a descurar o casamento com Maria Laurinda, também ela pintora, embora sofrível, cujo talento maior foi conduzir a sedução de Pedro António até ao casamento. Jeannette estabelece uma relação equívoca com o pintor. Atrai-o, mas não cede perante o seu desejo. Pelo contrário, conduz esse desejo para a experiência da morfina e, como consequência, para dependência da droga, de acordo com os interesses de Hugo Holbach. O meio artístico é assim tratado como um lugar de promiscuidade, uma vida de boémia, de cabarets,  de álcool e de drogas, um mundo vicioso, onde a tentação conduz rapidamente à queda.

É também um lugar de rivalidades, de pequenas e grandes traições, lugar onde impera o ressentimento e a inveja. Pedro António tem por amigo um outro pintor, Fausto. Contudo, este não passa de um pintor fracassado, em busca de um reconhecimento que nunca chega. A amizade que manifesta encobre um rancor profundo pelo talento e sucesso do seu presumido amigo. Não apenas cultiva uma atitude de desdém pelas costas, como, aproveitando o estado de degradação daquele, se envolve com a mulher, a negligenciada e esquecida Maria Laurinda. De certa forma, Guedes de Amorim retrata o ambiente artístico de Lisboa como uma antecâmara do Inferno, de Dante.

A queda de Pedro António inicia-se não propriamente com o encontro com a bela e sedutora traficante de drogas, mas antes, ao viver num mundo de fácil sedução erótica. É nessa amoralidade sexual que se vai inscrever a dependência das drogas. A morfina é um corolário de uma vida já moralmente viciosa. E é por isso que ele é inexoravelmente arrastado para uma queda que parece não ter fim. Todo o mundo que envolve o artista é vicioso e as personagens são todas elas corruptas do ponto de vista moral. Os amigos, a mulher, as amantes, os conhecidos. O que a narrativa pretende mostrar é que o mundo retratado tem um efeito sobre aqueles que o compõem. E esse efeito é a negação do livre-arbítrio e a submissão das personagens – em primeiro lugar, a de Pedro António – a um feroz determinismo. O efeito da viciosidade moral é a substituição da liberdade pela determinação. A pessoa deixa de ser senhora dos seus actos, que resultam já não de escolhas livres, mas de cadeias causais de tal modo poderosas que o culpado, por uma escolha original de entrar naquele mundo, se torna vítima inexorável delas.

É essa lógica determinista, própria do naturalismo, que elimina o terceiro elemento da trilogia judaico-cristã. Esta supõe que, após a tentação e a queda, exista a redenção. Ora, Guedes de Amorim ainda prefigura, na pessoa de Carlos, o irmão de Pedro, o homem de família e do trabalho, a possibilidade de uma redenção, quando ele tenta socorrê-lo e desviá-lo do mundo em que caiu. Contudo, a virtude e a sensatez do irmão chegam demasiado tarde, para tornar possível essa redenção. A lógica do determinismo social era suficientemente forte para evitar que a degradação do pintor tivesse uma reviravolta. Na verdade, a impossibilidade de redenção estava já sugerida nas primeiras linhas do romance: Uma enorme população de noctívagos, formando ruidosa feira cosmopolita, inundava o salão do luxuoso cabaret, ocupando todas as mesas. Vivia-se, com música, champagne e gargalhadas, mais uma noite de festa dos sentidos. E, pela numerosa frequência, os mais acostumados ao ambiente, podiam afirmar, cronometricamente, que eram três horas da manhã. A máquina, esse símbolo supremo do determinismo, estava em movimento desde o início.

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Jean-Paul Sartre, Os Dados Estão Lançados

 

Escrito em 1943 e publicado em 1947, Os Dados Estão Lançados (Les Jeux Sont Faits) é um guião cinematográfico para um filme como o mesmo título de Jean Delannoy, também de 1947. O horizonte narrativo é o de uma interpretação moderna do Mito de Orfeu. O amor entre Ève Charlier e Pierre Dumaine não enfrenta apenas a tentação. Orfeu perde Eurídice por não resistir à tentação de olhar para trás, de olhar para ela antes da saída do mundo dos mortos. É a necessidade de certificação, de possuir uma certeza, que perde os amantes no mito grego. No texto de Sartre, é ainda o passado que perde Ève e Pierre, mas um passado marcado pelas estruturas e compromissos sociais. Se o conflito inerente ao mito de Orfeu é entre o amor e o desejo, na obra de Sartre situa-se na escolha – isto é, um exercício da liberdade – entre um determinismo metafísico que lhes destina o amor ou um determinismo social que os afasta eternamente.

A narrativa desenrola-se entre dois espaços: o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. O mundo dos vivos é caracterizado por um regime político distópico. Um regente controla, através da sua milícia, toda a sociedade, a qual se encontra estruturalmente dividida em classes sociais rígidas e conflituantes. Ève, uma bela mulher, pertence às classes dominantes, casada com  André Charlier, um secretário da milícia, uma figura importante do regime. Pierre vem do mundo operário, um militante que organiza uma insurreição contra o despotismo do Regente. Têm uma coisa em comum: são ambos traídos. Ève pelo marido, que a envenena; Pierre por um jovem correligionário tido por traidor, que dispara sobre ele. É no mundo dos mortos que se encontram. Ora, este mundo surge como uma estrutura, no início, altamente burocratizada. Os mortos – melhor, os candidatos a mortos – têm de cumprir formalidades, como se tivessem de passar numa fronteira. Só quando assinam o documento adequado é que se podem considerar, efectivamente, mortos.

O mundo dos mortos, no texto de Sartre, não é o frio Hades, mas o mesmo mundo dos vivos. É nele que os mortos deambulam sem serem vistos, sem serem ouvidos, sem ocupar espaço. Observam os vivos, mas não podem interferir nas suas vidas. A morte não á passagem para um além, mas a transição para o mundo onde se estava, mas agora noutra condição. Morrer é mudar de condição. A morte é definitiva, a não ser que haja um erro burocrático. Se um homem e uma mulher estavam destinados um ao outro e não se chegam a encontrar em vida, é-lhes dada, depois de mortos, uma segunda oportunidade. Regressam à vida para cumprir o seu destino. Ora, a bela burguesa Ève e o simples operário Pierre estavam destinados um ao outro, mas na vida nunca se encontraram. Foi a morte que os aproximou. Ao verem-se no mundo dos mortos, descobrem o amor.

Retornados à vida, mantendo as recordações do que viveram no mundo de onde saíram, têm de consumar o amor e partilhar a existência. Caso falhem, o seu destino é o de Eurídice no mito grego. Ève e Pierre enfrentam, no entanto, dois obstáculos. Por um lado, o facto de pertencerem a mundos sociais distintos, o que o amor terá capacidade de superar. Por outro, a teia de compromissos que os liga às a esses mundo de onde provêem. Pierre, quando morto, descobre que a tentativa de insurreição que dirigia está condenada ao fracasso, que a milícia do regente conhece todo o plano e tem as forças militares preparadas para sufocar a revolta e pôr fim, através de um banho de sangue, à resistência ao regime opressor. Ève, mais do que descobrir, constata que o marido a assassinou, por causa da sua fortuna, e se prepara para enredar Lucette, a jovem irmã de Ève, apenas com 17 anos, numa teia de sedução, de modo a poder apropriar-se também da herança desta.

Ao voltar à vida devido ao amor não cumprido, eles deparam-se com a grande pressão do passado. Pierre pretende avisar os seus camaradas do perigo que correm, mas eles sabem que ele se relaciona com a mulher do secretário da milícia e, perplexos por ele não estar morto, apesar do atentado, desconfiam que os traiu. Ève pretende, por seu lado, avisar a irmã da natureza do marido, do seu carácter malévolo e das intenções que ele tem tanto para com ela, Ève, como para com a própria Lucette. Esta, porém, não acredita na irmã. Não crê que o cunhado seja aquilo que é. Pelo contrário, dele apenas vê a aparência gentil e sedutora. Sartre une os dois casos sob uma mesma rubrica. A impotência da verdade para tocar aqueles a quem ela se dirige. Pierre não consegue vencer a reserva dos seus correligionários; Ève é incapaz de fazer com que a irmã encare a realidade tal como ela é.

É nesta tentativa de levar a verdade àqueles com quem tinham ligações no passado que vai funcionar como uma analogia com o desejo de Orfeu em se certificar, olhando para trás, que Eurídice o segue em direcção ao mundo dos vivos, perdendo-a irrevogavelmente. Tanto Ève como Pierre olham para trás, para o mundo que tinham deixado ao morrer, e isso terá um preço elevado. A grande questão que o texto de Sartre coloca é se o determinismo social é de tal modo forte que funciona como uma causa necessária no comportamento dos indivíduos. Estariam Ève e Pierre de tal modo determinados a não viverem o amor que lhes tinha sido destinado, que eles apenas cumpriram um guião que não dependeria deles? Ora, se se tiver em conta a ideia sartriana de que estamos condenados a ser livres, que todas as nossas decisões e escolhas dependem de um acto livre, o que se poderá dizer é que Ève e Pierre escolheram submeter-se ao determinismo social que exercia sobre eles pressão, em vez de se submeterem a uma espécie de determinismo metafísico que, apesar da improbabilidade, lhes abria o caminho para um grande amor. A subtiliza da obra de Sartre é de mostrar que mesmo a escolha de um determinismo e não de outro é ainda um acto livre, e como todos os actos livres torna os seus autores responsáveis por aquilo em que se tornam. É a isto que alude a máxima sartriana de que a existência precede a essência: aquilo que somos é o fruto das escolhas que fazemos.

sábado, 26 de outubro de 2024

Philip K. Dick, Valis


Publicado em 1981, um ano antes da morte do autor, Valis, de Philip K. Dick, é um romance que combina interesses temáticos de múltiplas ordens, desde os que provêm da Filosofia até aos que se inscrevem na área da mística religiosa, passando pela literatura de ficção científica. Uma leitura possível, entre as inumeráveis que podem emergir do romance, pode fundar-se numa espécie de crítica da modernidade. Não na perspectiva de um tradicionalismo desejoso de um retorno aos tempos pré-modernos, mas na manifestação de uma subjectividade fragmentada e alienada. Se há um marco simbólico da emergência da modernidade, esse marco é o sujeito cartesiano que se afirma como fundamento do conhecimento, capaz de conhecer a realidade, desde que não deixe interferir o seu arbítrio no julgamento das crenças. Esse sujeito transparente é, no romance de Philip K. Dick, uma subjectividade tocada pela loucura, fragmentada, uma identidade cindida e perdida na realidade.

O optimismo epistemológico cartesiano dá lugar a uma desconfiança na possibilidade de conhecer a realidade. Esta deixa de ser transparente a uma razão autocontrolada, fundada em evidências garantidas pela veracidade divina, para poder ser o fruto de uma manipulação, talvez de um génio maligno, para retomar a retórica epistémica de Descartes. A razão não é suficiente para compreender um mundo manipulado. Aqui é perceptível a necessidade de o protagonista Horselover Fat, um alter-ego do autor, se aproximar da religião, na esperança de que a experiência a mística abra o caminho que a razão é impotente para abrir. É aqui que se insere o título do romance. VALIS é o acrónimo de Vast Active Living Intelligence Service, uma entidade, tida pelo protagonista como divina, que se manifestaria através de um raio rosa que o atinge e lhe abre o caminho para o questionamento da realidade e a desconstrução das representações correntes que dela fazem os seres humanos.

Contudo, naquilo que se poderia chamar uma visão pós-moderna, a mística do romance não se inscreve já na tradição cristã, mas está mais próxima de uma revivescência da gnose e de perspectivas gnósticas acerca do mundo, o que convoca a discussão sobre a origem do mal. Esta questão, a da origem do mal, liga-se ao problema da realidade. Esta é percebida pelo protagonista, a partir das suas experiências místicas, como informação. O universo seria, na sua essência, informação, uma perspectiva ontológica que combina teologia e ciência. É esta informação que pode ser interpretada ou manipulada por quem tenha o conhecimento adequado, podendo haver intérpretes de natureza benévola, como VALIS, ou outros cujas intenções sejam menos benevolentes. Isto permite integrar uma outra temática de índole filosófica na estrutura narrativa de VALIS. Trata-se do problema do livre-arbítrio. Por um lado, a percepção de que essa informação constitutiva da realidade é manipulada e a crença de que somos livres não passa de uma ilusão. Por outro lado, Horselover Fat empreende uma espécie de viagem em busca de uma realidade não manipulada, da realidade conformada por VALIS, de uma realidade onde seja genuinamente livre.

A natureza fragmentária da mente do protagonista, assim como a da própria narrativa, a pluralidade de referências e o recurso a jogos de linguagem de proveniência tão diversa como a ciência ou a teologia, tudo isto compõe uma estratégia narrativa que pretende reconstruir um mundo romanesco que dê conta da experiência existencial da América dos anos sessenta e setenta, onde uma explosão social e cultural tornou a paisagem humana complexa e de difícil decifração para subjectividades que perderam a capacidade de sustentar a certeza cartesiana. O romance de Philip K. Dick surge assim coma a reconstrução de uma experiência social e existencial de que faziam parte a guerra do Vietname, o desenvolvimento de um capitalismo avassalador, apesar da crise dos anos setenta, a explosão de experiências estéticas e artísticas e a proliferação de culturas alternativas à cultura americana dominante. Em VALIS, essa paisagem disfórica, de alguma forma, procura encontrar um sentido.

Se se percebe na leitura do romance a preocupação do autor com temas que actualmente se tornaram essenciais na vida das sociedades ocidentais, temas como o das teorias da conspiração e o das paranóias sociais, também se encontra, desse o início, uma visão crítica da contracultura que naquelas décadas de sessenta e setenta tomou conta das novas gerações, uma contracultura fundada no uso de alucinogénios como caminho de uma busca espiritual fora das exigências das estruturas do cristianismo ocidental. O suicídio de Gloria, uma amiga do protagonista, é o ponto de partida para essa crítica de uma visão do mundo na qual a juventude norte-americana tinha embarcado e que arrastou atrás dela também partes substanciais da juventude europeia. Entre as muitas coisas paradoxais que se manifestam em VALIS, encontra-se essa crítica da contracultura norte-americana num dos produtos intelectuais mais emblemáticos dessa contracultura, o próprio romance VALIS.

sábado, 12 de outubro de 2024

Eduardo de Noronha, O Conde de Villamediana


Publicado em dois volumes, no ano de 1938, O Conde de Villamediana é um romance histórico, que combina factos históricos e ficcionais. Representa uma prova de que a sombra do romantismo se prolongou, na literatura portuguesa, bem dentro do século XX. De certo modo, Almeida Garrett, com o Arco de Santana, e Alexandre Herculano, com Eurico, o Presbítero e O Monge de Cister, tiveram uma prolongada descendência, que nem o advento do Realismo e do Naturalismo, nem a chegada dos Modernismos, conseguiram pôr em causa, mesmo que a crítica e a universidade pouca atenção dêem a esse contínuo fluir, desde o século XIX, da narrativa histórica. O romance histórico nunca deixou de atrair escritores e leitores. É o caso de Eduardo de Noronha e das suas obras romanescas.

O Conde de Villamediana é uma figura histórica. Trata-se de Juan de Tassis y Peralta, segundo conde de Villamediana, que nasceu em Lisboa em 1582 (os pais acompanharam Filipe II (primeiro de Portugal) na viagem para Lisboa, quando assume a coroa de Portugal e permanece algum tempo no país.  Morreu, assassinado, em 1622, em Madrid. Foi um poeta do Barroco espanhol, ligado ao culteranismo, uma subcorrente do conceptismo, que interpretou de maneira bastante pessoal. Foi uma personalidade polémica, tanto pela sua inclinação para D. Juan como pela sua ousada sátira das elites castelhanas, as quais eram retratadas impiedosamente nos seus poemas. Isso valeu-lhe três exílios ainda no tempo de Filipe III (segundo de Portugal) e uma situação conflituosa com a nobreza espanhola no tempo de Filipe IV (terceiro de Portugal). As razões do seu assassinato nunca foram clarificadas e vão desde a vingança de nobres poderosos cansados da sua pena ou com as suas conquistas amorosas, do próprio rei, agastado com um eventual caso entre a rainha e o conde, até ao facto de estar implicado num processo de sodomia, no qual vários homens acabaram na fogueira, a que ele escapara. A figura deu origem a várias obras literárias em Espanha, tanto no século XIX como no XX.

Apesar da ligação do conde a Portugal ser fortuita, o nascimento devido a um acaso histórico e uma ou outra amante de origem portuguesa, Eduardo de Noronha utiliza-o para fazer um retrato da corte espanhola no tempo do último dos Filipes que governaram Portugal. A corte era um espaço de grande fausto e um lugar de ostentação, mas também o lugar de intriga política, de corrupção e de fomento da injustiça. Esta caracterização de um poder absoluto é o espaço ideal para fazer emergir um herói, sendo ele próprio um nobre e um dos grandes de Espanha, que desafia os poderes instituídos e as práticas políticas e sociais que giravam em torno desse poder. Um herói que é benevolente com os humilhados e intrépido perante os poderes instituídos. A narrativa é, assim, um exercício de denúncia de um poder político que oprimia a nação portuguesa, explorando eventuais contradições no seio da própria elite castelhana.

Outro elemento estrutural do romance de Eduardo de Noronha é a oposição, de inspiração romântica, entre o indivíduo e a colectividade, neste caso a aristocracia espanhola. Villamediana é uma excepção no meio de um grupo social, ou, para se ser mais preciso, uma casta. Mais do que um nobre, Juan de Tassis y Peralt é um indivíduo. Esta individualidade é sublinhada pela excepcionalidade, seja na poesia, seja no confronto, seja na sedução. A sua excepcionalidade manifesta-se também por não integrar o grupo de bajuladores nem pretender ao estatuto de protegido real. Afronta o poder não por uma causa social, mas por uma estética pessoal. Ora, é essa subjectividade radical que se torna perigosa para o Absolutismo, pois não representa um confronto, mas uma ameaça de dissolução. O absolutismo é possível onde os indivíduos estão subjugados aos imperativos da casta a que pertencem, seja à nobreza, ao clero ou ao terceiro-estado. Villamediana, tal como é concebido por Eduardo de Noronha, é uma anunciação do triunfo da subjectividade sobre a tradição e a cultura comum. É a afirmação do valor central da liberdade individual perante a ordem social marcada pela sujeição e subordinação. As aventuras e peripécias do conde são uma ruptura com a servidão voluntária com que os indivíduos se submetem ao estatuto do corpo social a que pertencem e ao arbítrio absoluto do supremo magistrado. De certo modo, Eduardo de Noronha transforma Villamediana num anunciador dos novos tempos.

Contudo, o autor não resiste em capturar o próprio herói numa das categorias mais tradicionais e conservadoras, a que está ligada à oposição entre o desejo carnal e um amor casto, de natureza platónica. O romance começa com o resgate por Villamediana de Lavínia, uma mulher pertencente às camadas populares, mas de grande beleza, das mãos do marido, que, continuamente, a maltratava. Entre o conde e a mulher resgatada nasce uma relação que se tornará arquetípica no decorrer da narrativa. Villamediana deseja-a, mas ela, amando-o, recusa qualquer tipo de comércio sexual. O seu amor é puro e contemplativo e é este amor idealizado que se torna o critério de avaliação das relações que o herói entretece com outras mulheres e, eventualmente, com a rainha. O desejo do corpo e a entrega erótica surgem como uma sombra perante a luminosidade de um intenso amor espiritualizado e casto, que é ao mesmo tempo uma fonte de frustração do desejo do amante. O romance é assim percorrido por uma dupla tensão. A primeira, a que opõe a indivíduo ao organismo social. A segunda, a que opõe eros e ágape, a paixão erótica e o amor espiritual.

A obra está concebida, apesar de não poucas vezes estar estruturada segundo o cânone de romance de aventuras, como uma tragédia. Juan de Tassis y Peralta é um herói trágico que caminha para a sua perda com a cegueira de todos os heróis das tragédias clássicas. De onde vem essa cegueira? O que lhe oculta o destino que espera por ele? Nos heróis gregos, a perda acontece devido à húbris, à desmedida. Tomado pela húbris, o herói ultrapassa a sua medida, o que se manifesta na presunção e arrogância perante os deuses. Ora, Villamediana desafia os deuses terrestres e eles conluiam-se para a sua perda. Onde se manifestam presunção e arrogância em Juan de Tassis y Peralta? Tanto na afirmação da individualidade contra o senso comum e o conformismo social, como no desregramento erótico. A morte do herói acaba por lançar um véu conservador naquilo que foi mostrado como redentor e socialmente inovador. A afirmação do self e o culto de Eros têm um preço e esse preço é a morte.

domingo, 29 de setembro de 2024

Yukio Mishima, O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar

Publicado, no Japão, em 1963, o romance O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar, insere-se na cruzada do autor, Yukio Mishima, contra o Japão moderno nascido da derrota na segunda Guerra Mundial e da ocupação do país pelas tropas aliadas, encabeçadas pelas dos Estados Unidos, ocupação que durou entre a rendição dos japoneses em 1945 e 1952. Essa rendição e essa ocupação militar foram, para o Japão, muito mais do que um acontecimento político e militar. Representaram a transição do país de um mundo tradicional, estruturado em torno do Imperador e dos valores da aristocracia guerreira, para o mundo moderno, onde esses valores aristocráticos do heroísmo e da honra são substituídos pelos valores burgueses do mundo dos negócios e do conformismo social. É este novo mundo – o qual, aos olhos dos ocidentais, mas também de grande parte dos japoneses, teve um êxito assinalável, transformando o Japão numa potência económica de primeira grandeza – que Mishima descreve e julga cruamente, apesar de uma linguagem poética de grande riqueza, no romance de 1963.

O enredo gira em torno de três personagens. Noboru, um adolescente de 13 anos, Fusako, uma jovem viúva e mãe de Noboru, e Ryuji, um marinheiro mercante com quem Fusako estabelece uma relação amorosa. Estas personagens não são meras representações singulares, mas funcionam, na economia do romance de Mishima, como autênticos arquétipos de atitudes sociais presentes na sociedade japonesa da época. Ryuji representa o homem com valores tradicionais que, até certa altura, aspira a um grande feito heróico, no qual encontraria o sentido da sua existência de homem solitário que atravessa os mares. Fusako, dona de uma boutique de luxo, herdada do marido, representa a mulher moderna, forte e independente, um modelo do espírito burguês triunfante, ao mesmo tempo competente nos negócios e tocada pela sentimentalidade afectiva, também ela marcadamente burguesa. Em Noboru, por seu turno, simboliza-se uma nova geração brilhante e cruel, destituída da vulnerabilidade do sentimento e cultora de uma visão distorcida da realidade. Assume os valores tradicionais do heroísmo, mas já sem o suporte da sociedade tradicional que lhes dava sentido, o que a conduz a uma visão niilista do mundo.

O estatuto de Ryuji é marcado por uma equivocidade inicial que será o fundamento do desenvolvimento da personagem ao longo do romance. Ryuji, ele que é um homem do mar, habituado à solidão das viagens marítimas, aspira a um grande gesto, a um acto heróico que dê sentido à sua existência. Contudo, a oportunidade desse gesto decisivo nunca lhe aparece disponível no horizonte existencial. Na verdade, ele não é um marinheiro militar em tempo de guerra, onde poderia haver lugar para a coragem e a heroicidade, mas um marinheiro mercante, um agente do mundo burguês cuja função é o prosaico transporte de mercadorias e não a realização de qualquer acto que o sublinhe como homem de honra e o nobilite aos seus próprios olhos. O encontro com Fusako funciona como um revelador da inadequação do seu projecto existencial. Nasce em si o desejo de trocar a vida no mar pela vida mais segura em terra, a integração numa família burguesa. Esta transição de um espírito heróico para um espírito conformista e burguês não deve ser lido apenas como uma metamorfose subjectiva de Ryuji, mas como o sintoma de que esse mundo da honra e da glória fundada na heroicidade já não existia. A frustração de Ryuji com o seu destino e a desistência da heroicidade é o resultado de uma transformação na ordem social, marcada pela decadência e morte dos valores aristocráticos e a vitória, dinamizada pela presença americana, dos valores burgueses, que são também, aos olhos de Yukio Mishima, valores femininos.

Fusako, a bela viúva, é aquela que vai dinamizar no marinheiro a tomada de consciência da real situação em que vive. A atracção que ela sobre ele exerce é também o apelo que a terra, enquanto símbolo de uma vida tranquila e sólida, lhe começa a dirigir. Ela é o símbolo de uma nova sociedade. Independente e cheia de sucesso profissional, mas também uma mulher em busca da dimensão afectiva, onde os sentimentos são reconhecidos e precisam de espaço existencial para se manifestarem. Esta dupla vertente de Fusako – a competência empresarial e a sentimentalidade feminina ou uma certa vulnerabilidade emocional – são também um retrato, na perspectiva tradicionalista de Mishima, do mundo burguês vitorioso no Japão. Fusako, também ela, não é apenas o retrato de uma mulher singular, mas a radiografia da sociedade burguesa do pós-guerra. Ela é a manifestação plena dos novos valores, os quais, depreende-se da leitura do romance, representam uma queda. Do Japão heróico, da sociedade onde o risco de vida e o sentido da honra dão uma orientação pelo menos à elite aristocrática, passa-se a uma sociedade que procura a estabilidade sempre necessária ao mundo dos negócios.

A personagem central do romance é, contudo, Noboru, o filho de Fusako. Ele, juntamente com os seus amigos, representa a nova geração que não se reconhece no mundo burguês e sentimental de Fusako e já não possui o respaldo de uma tradição heróica que lhe dê uma orientação. Noboru e os seus amigos são retratados, do ponto de vista intelectual, com extremamente precoces, mas emocionalmente frios, destituídos de qualquer tipo de sentimentalidade convencional, capazes da mais pura crueldade. Noboru e os amigos representam os velhos valores, mas sem o espaço onde estes poderiam ser exercidos, o que os torna violentos, com uma enorme vontade de poder e controlo dos outros. A princípio Noboru entusiasma-se com a presença do marinheiro, vê nele o homem autêntico que vive no mar, o símbolo de uma liberdade absoluta e dos grandes perigos. No entanto, a relação afectiva de Ryuji com a sua mãe, assim como a equação de deixar a vida no mar e trocá-la por uma vida estável e de conforto, invertem a visão de Noboru sobre o marinheiro. É visto, tanto por ele como pelos seus amigos, como um traidor que deve ser punido com a pena que espera todos os traidores.

Yukio Mishima serve-se de uma prosa poética com grande poder evocativo para tomar posição sobre o mundo em que vive. Um mundo onde se dá uma desprezível vitória do feminino – e é assim que Norobu vê a mãe, como alguém desprezível por ceder à dimensão sentimental – sobre um outro mundo fundado nos valores aristocráticos da honra e do heroísmo. O pior e o mais digno de punição é aquele que pertencendo à velha ordem cede à nova e se acomoda nela, como é o caso do marinheiro. Aqueles que conhecem os valores tradicionais e que um dia aspiraram à honra dos grandes feitos e agora se acomodam são traidores. Mishima, apesar desta visão crítica do novo Japão, não alimenta, no romance, qualquer expectativa de um retorno. A nova geração, mesmo que tocada pelo desprezo da moral convencional e do estilo de vida burguês, centra-se numa visão distorcida da realidade e da própria tradição. Almeja uma liberdade absoluta, assente na pura crueldade e na ausência de quaisquer outros valores, que não conduzirá a mais nada do que a uma violência sem sentido.