Um dos testes que o romance faz está relacionado com a
natureza social do homem. Somos seres em relação, diz-se. O romance questiona:
e se ficarmos isolados? Se toda a sociabilidade humana desaparecer porque sou
apenas um? A parede é uma metáfora para pensar o processo de
hiperindividualização por que passava já, nos anos sessenta do século passado,
a sociedade ocidental. Essa hiperindividualização significa, na prática, um
corte com os outros, mesmo que com eles se conviva socialmente ou até na vida
amorosa. O indivíduo, na sua afirmação radical, transporta a parede que o isola
de todos os outros, os quais deixam de ter para ele uma existência real. O
romance hiperboliza a experiência social de isolamento e torna visível aquilo
que o hábito e a vida quotidiana ocultam. A estranha parede que separa a
protagonista é o símbolo da parede que torna estranhos, para cada um de nós,
qualquer outro ser humano.
A alteração no espaço, a limitação da liberdade de ir para
além da parede, devolve, paradoxalmente, à protagonista uma liberdade radical.
Toda a convenção social, toda a regra moral, toda a lei jurídica, tudo o que
resulta do processo de regulação social, cuja finalidade é limitar as
liberdades individuais naquilo que têm de danoso para os outros, desapareceu.
Apenas a lei da natureza a limita. Essa experiência de uma liberdade absoluta
tem o condão de, ao ver-se livre das regras sociais, a colocar perante os seus
limites animais. Ela precisa de sobreviver, de organizar a vida não para e com
os outros, mas para si e apenas consigo. Quando se elimina a convenção – que
diminui e, por vezes, sufoca a nossa liberdade – o que descobrimos é a pura
necessidade. Ela vai ter de aprender a trabalhar a terra, de cuidar da vaca que
encontrou, do cão que herdou ou da gata que, na sua independência, usa a sua
hospitalidade. O efeito paradoxal do romance é mostrar, sem nunca o afirmar,
que a liberdade só existe em sociedade – nessa mesmo que nos coage e nos
limita; fora dela, só encontramos a necessidade animal.
Se no romance o espaço se limitou, o tempo sofreu uma
metamorfose. Ficar naquela situação e ter de sobreviver significa sair do tempo
histórico e entrar num tempo cíclico, o tempo da natureza. O tempo histórico é
linear: uma linha que vem do passado em direcção ao futuro, que é preenchida
pelos acontecimentos da vida social da humanidade. É essa linearidade que
conduz, por necessidade da própria razão humana, a colocar nesse passado um
tempo mítico originário e, no futuro, uma qualquer ideia de fim da história.
Tudo isso é agora evacuado pelos ritmos da natureza, com as suas épocas de
sementeiras e de colheitas, com a sua dinâmica de um eterno retorno das mesmas
tarefas. Não há história sem comunidade humana, sem o trágico da acção, sem a
disputa interminável entre homens e comunidades.
Esta saída da história e a perda de sentido do calendário
põem à protagonista um problema de referenciação temporal. Como se orientará,
nesse seu novo mundo, no tempo? Há uma dupla estratégia de referenciação. A
primeira é a da já referida ciclicidade da natureza, com os trabalhos
necessários para assegurar a sobrevivência, segundo o ritmo das estações. A
segunda é a escrita do diário como modalidade de consolidação da memória e de
referenciação temporal. O romance é o diário da protagonista, o registo da sua
existência enquanto exemplar único de uma espécie que parece ter-se extinguido.
Pode pensar-se, na interpretação do romance, a escrita do diário de dois pontos
de vista. Por um lado, como um acto de resistência ao desaparecimento da
humanidade. Por outro, como o registo dos momentos finais dessa mesma
humanidade. O mais plausível é pensar essa escrita dirigida a si mesma como um
acto de resistência e um registo de apagamento, uma espécie de objecto que se
poderá tornar um monumento, embora não exista ninguém para o ler. Um guia na
temporalidade até à hora em que já não haverá qualquer ser que tenha
consciência dessa temporalidade.
Mais do que o desaparecimento da sociabilidade humana e o
confronto com a necessidade estrita da sobrevivência, numa situação em que os
processos de cooperação desapareceram, o romance acaba por reforçar – na
experiência do isolamento mais radical – a natureza social dos seres humanos. A
protagonista cria uma comunidade com os animais à sua volta. O cão Lince, a
vaca Bella, com o seu filho, a gata e as suas ninhadas. A comunidade – o viver
com os outros – revela-se assim como inescapável. Desaparecidos os seres
humanos, há que encontrar uma nova comunidade, para que a vida continue a ser
possível. E é aqui que se revela uma das ideias centrais do livro. Essa
comunidade assenta não na utilidade, mas no cuidado. A protagonista cuida dos
seus animais não porque lhe sejam úteis, mas para os proteger. Isto permite
repensar todo o romance como uma metáfora sobre a necessidade de substituir,
nas relações humanas, o ethos da relação utilitária, que isola e
coisifica as pessoas, por um ethos do cuidado, por um dever de
atenção ao outro, mesmo que esse outro não tenha o rosto que esperamos.