sábado, 26 de outubro de 2024

Philip K. Dick, Valis


Publicado em 1981, um ano antes da morte do autor, Valis, de Philip K. Dick, é um romance que combina interesses temáticos de múltiplas ordens, desde os que provêm da Filosofia até aos que se inscrevem na área da mística religiosa, passando pela literatura de ficção científica. Uma leitura possível, entre as inumeráveis que podem emergir do romance, pode fundar-se numa espécie de crítica da modernidade. Não na perspectiva de um tradicionalismo desejoso de um retorno aos tempos pré-modernos, mas na manifestação de uma subjectividade fragmentada e alienada. Se há um marco simbólico da emergência da modernidade, esse marco é o sujeito cartesiano que se afirma como fundamento do conhecimento, capaz de conhecer a realidade, desde que não deixe interferir o seu arbítrio no julgamento das crenças. Esse sujeito transparente é, no romance de Philip K. Dick, uma subjectividade tocada pela loucura, fragmentada, uma identidade cindida e perdida na realidade.

O optimismo epistemológico cartesiano dá lugar a uma desconfiança na possibilidade de conhecer a realidade. Esta deixa de ser transparente a uma razão autocontrolada, fundada em evidências garantidas pela veracidade divina, para poder ser o fruto de uma manipulação, talvez de um génio maligno, para retomar a retórica epistémica de Descartes. A razão não é suficiente para compreender um mundo manipulado. Aqui é perceptível a necessidade de o protagonista Horselover Fat, um alter-ego do autor, se aproximar da religião, na esperança de que a experiência a mística abra o caminho que a razão é impotente para abrir. É aqui que se insere o título do romance. VALIS é o acrónimo de Vast Active Living Intelligence Service, uma entidade, tida pelo protagonista como divina, que se manifestaria através de um raio rosa que o atinge e lhe abre o caminho para o questionamento da realidade e a desconstrução das representações correntes que dela fazem os seres humanos.

Contudo, naquilo que se poderia chamar uma visão pós-moderna, a mística do romance não se inscreve já na tradição cristã, mas está mais próxima de uma revivescência da gnose e de perspectivas gnósticas acerca do mundo, o que convoca a discussão sobre a origem do mal. Esta questão, a da origem do mal, liga-se ao problema da realidade. Esta é percebida pelo protagonista, a partir das suas experiências místicas, como informação. O universo seria, na sua essência, informação, uma perspectiva ontológica que combina teologia e ciência. É esta informação que pode ser interpretada ou manipulada por quem tenha o conhecimento adequado, podendo haver intérpretes de natureza benévola, como VALIS, ou outros cujas intenções sejam menos benevolentes. Isto permite integrar uma outra temática de índole filosófica na estrutura narrativa de VALIS. Trata-se do problema do livre-arbítrio. Por um lado, a percepção de que essa informação constitutiva da realidade é manipulada e a crença de que somos livres não passa de uma ilusão. Por outro lado, Horselover Fat empreende uma espécie de viagem em busca de uma realidade não manipulada, da realidade conformada por VALIS, de uma realidade onde seja genuinamente livre.

A natureza fragmentária da mente do protagonista, assim como a da própria narrativa, a pluralidade de referências e o recurso a jogos de linguagem de proveniência tão diversa como a ciência ou a teologia, tudo isto compõe uma estratégia narrativa que pretende reconstruir um mundo romanesco que dê conta da experiência existencial da América dos anos sessenta e setenta, onde uma explosão social e cultural tornou a paisagem humana complexa e de difícil decifração para subjectividades que perderam a capacidade de sustentar a certeza cartesiana. O romance de Philip K. Dick surge assim coma a reconstrução de uma experiência social e existencial de que faziam parte a guerra do Vietname, o desenvolvimento de um capitalismo avassalador, apesar da crise dos anos setenta, a explosão de experiências estéticas e artísticas e a proliferação de culturas alternativas à cultura americana dominante. Em VALIS, essa paisagem disfórica, de alguma forma, procura encontrar um sentido.

Se se percebe na leitura do romance a preocupação do autor com temas que actualmente se tornaram essenciais na vida das sociedades ocidentais, temas como o das teorias da conspiração e o das paranóias sociais, também se encontra, desse o início, uma visão crítica da contracultura que naquelas décadas de sessenta e setenta tomou conta das novas gerações, uma contracultura fundada no uso de alucinogénios como caminho de uma busca espiritual fora das exigências das estruturas do cristianismo ocidental. O suicídio de Gloria, uma amiga do protagonista, é o ponto de partida para essa crítica de uma visão do mundo na qual a juventude norte-americana tinha embarcado e que arrastou atrás dela também partes substanciais da juventude europeia. Entre as muitas coisas paradoxais que se manifestam em VALIS, encontra-se essa crítica da contracultura norte-americana num dos produtos intelectuais mais emblemáticos dessa contracultura, o próprio romance VALIS.

sábado, 12 de outubro de 2024

Eduardo de Noronha, O Conde de Villamediana


Publicado em dois volumes, no ano de 1938, O Conde de Villamediana é um romance histórico, que combina factos históricos e ficcionais. Representa uma prova de que a sombra do romantismo se prolongou, na literatura portuguesa, bem dentro do século XX. De certo modo, Almeida Garrett, com o Arco de Santana, e Alexandre Herculano, com Eurico, o Presbítero e O Monge de Cister, tiveram uma prolongada descendência, que nem o advento do Realismo e do Naturalismo, nem a chegada dos Modernismos, conseguiram pôr em causa, mesmo que a crítica e a universidade pouca atenção dêem a esse contínuo fluir, desde o século XIX, da narrativa histórica. O romance histórico nunca deixou de atrair escritores e leitores. É o caso de Eduardo de Noronha e das suas obras romanescas.

O Conde de Villamediana é uma figura histórica. Trata-se de Juan de Tassis y Peralta, segundo conde de Villamediana, que nasceu em Lisboa em 1582 (os pais acompanharam Filipe II (primeiro de Portugal) na viagem para Lisboa, quando assume a coroa de Portugal e permanece algum tempo no país.  Morreu, assassinado, em 1622, em Madrid. Foi um poeta do Barroco espanhol, ligado ao culteranismo, uma subcorrente do conceptismo, que interpretou de maneira bastante pessoal. Foi uma personalidade polémica, tanto pela sua inclinação para D. Juan como pela sua ousada sátira das elites castelhanas, as quais eram retratadas impiedosamente nos seus poemas. Isso valeu-lhe três exílios ainda no tempo de Filipe III (segundo de Portugal) e uma situação conflituosa com a nobreza espanhola no tempo de Filipe IV (terceiro de Portugal). As razões do seu assassinato nunca foram clarificadas e vão desde a vingança de nobres poderosos cansados da sua pena ou com as suas conquistas amorosas, do próprio rei, agastado com um eventual caso entre a rainha e o conde, até ao facto de estar implicado num processo de sodomia, no qual vários homens acabaram na fogueira, a que ele escapara. A figura deu origem a várias obras literárias em Espanha, tanto no século XIX como no XX.

Apesar da ligação do conde a Portugal ser fortuita, o nascimento devido a um acaso histórico e uma ou outra amante de origem portuguesa, Eduardo de Noronha utiliza-o para fazer um retrato da corte espanhola no tempo do último dos Filipes que governaram Portugal. A corte era um espaço de grande fausto e um lugar de ostentação, mas também o lugar de intriga política, de corrupção e de fomento da injustiça. Esta caracterização de um poder absoluto é o espaço ideal para fazer emergir um herói, sendo ele próprio um nobre e um dos grandes de Espanha, que desafia os poderes instituídos e as práticas políticas e sociais que giravam em torno desse poder. Um herói que é benevolente com os humilhados e intrépido perante os poderes instituídos. A narrativa é, assim, um exercício de denúncia de um poder político que oprimia a nação portuguesa, explorando eventuais contradições no seio da própria elite castelhana.

Outro elemento estrutural do romance de Eduardo de Noronha é a oposição, de inspiração romântica, entre o indivíduo e a colectividade, neste caso a aristocracia espanhola. Villamediana é uma excepção no meio de um grupo social, ou, para se ser mais preciso, uma casta. Mais do que um nobre, Juan de Tassis y Peralt é um indivíduo. Esta individualidade é sublinhada pela excepcionalidade, seja na poesia, seja no confronto, seja na sedução. A sua excepcionalidade manifesta-se também por não integrar o grupo de bajuladores nem pretender ao estatuto de protegido real. Afronta o poder não por uma causa social, mas por uma estética pessoal. Ora, é essa subjectividade radical que se torna perigosa para o Absolutismo, pois não representa um confronto, mas uma ameaça de dissolução. O absolutismo é possível onde os indivíduos estão subjugados aos imperativos da casta a que pertencem, seja à nobreza, ao clero ou ao terceiro-estado. Villamediana, tal como é concebido por Eduardo de Noronha, é uma anunciação do triunfo da subjectividade sobre a tradição e a cultura comum. É a afirmação do valor central da liberdade individual perante a ordem social marcada pela sujeição e subordinação. As aventuras e peripécias do conde são uma ruptura com a servidão voluntária com que os indivíduos se submetem ao estatuto do corpo social a que pertencem e ao arbítrio absoluto do supremo magistrado. De certo modo, Eduardo de Noronha transforma Villamediana num anunciador dos novos tempos.

Contudo, o autor não resiste em capturar o próprio herói numa das categorias mais tradicionais e conservadoras, a que está ligada à oposição entre o desejo carnal e um amor casto, de natureza platónica. O romance começa com o resgate por Villamediana de Lavínia, uma mulher pertencente às camadas populares, mas de grande beleza, das mãos do marido, que, continuamente, a maltratava. Entre o conde e a mulher resgatada nasce uma relação que se tornará arquetípica no decorrer da narrativa. Villamediana deseja-a, mas ela, amando-o, recusa qualquer tipo de comércio sexual. O seu amor é puro e contemplativo e é este amor idealizado que se torna o critério de avaliação das relações que o herói entretece com outras mulheres e, eventualmente, com a rainha. O desejo do corpo e a entrega erótica surgem como uma sombra perante a luminosidade de um intenso amor espiritualizado e casto, que é ao mesmo tempo uma fonte de frustração do desejo do amante. O romance é assim percorrido por uma dupla tensão. A primeira, a que opõe a indivíduo ao organismo social. A segunda, a que opõe eros e ágape, a paixão erótica e o amor espiritual.

A obra está concebida, apesar de não poucas vezes estar estruturada segundo o cânone de romance de aventuras, como uma tragédia. Juan de Tassis y Peralta é um herói trágico que caminha para a sua perda com a cegueira de todos os heróis das tragédias clássicas. De onde vem essa cegueira? O que lhe oculta o destino que espera por ele? Nos heróis gregos, a perda acontece devido à húbris, à desmedida. Tomado pela húbris, o herói ultrapassa a sua medida, o que se manifesta na presunção e arrogância perante os deuses. Ora, Villamediana desafia os deuses terrestres e eles conluiam-se para a sua perda. Onde se manifestam presunção e arrogância em Juan de Tassis y Peralta? Tanto na afirmação da individualidade contra o senso comum e o conformismo social, como no desregramento erótico. A morte do herói acaba por lançar um véu conservador naquilo que foi mostrado como redentor e socialmente inovador. A afirmação do self e o culto de Eros têm um preço e esse preço é a morte.

domingo, 29 de setembro de 2024

Yukio Mishima, O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar

Publicado, no Japão, em 1963, o romance O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar, insere-se na cruzada do autor, Yukio Mishima, contra o Japão moderno nascido da derrota na segunda Guerra Mundial e da ocupação do país pelas tropas aliadas, encabeçadas pelas dos Estados Unidos, ocupação que durou entre a rendição dos japoneses em 1945 e 1952. Essa rendição e essa ocupação militar foram, para o Japão, muito mais do que um acontecimento político e militar. Representaram a transição do país de um mundo tradicional, estruturado em torno do Imperador e dos valores da aristocracia guerreira, para o mundo moderno, onde esses valores aristocráticos do heroísmo e da honra são substituídos pelos valores burgueses do mundo dos negócios e do conformismo social. É este novo mundo – o qual, aos olhos dos ocidentais, mas também de grande parte dos japoneses, teve um êxito assinalável, transformando o Japão numa potência económica de primeira grandeza – que Mishima descreve e julga cruamente, apesar de uma linguagem poética de grande riqueza, no romance de 1963.

O enredo gira em torno de três personagens. Noboru, um adolescente de 13 anos, Fusako, uma jovem viúva e mãe de Noboru, e Ryuji, um marinheiro mercante com quem Fusako estabelece uma relação amorosa. Estas personagens não são meras representações singulares, mas funcionam, na economia do romance de Mishima, como autênticos arquétipos de atitudes sociais presentes na sociedade japonesa da época. Ryuji representa o homem com valores tradicionais que, até certa altura, aspira a um grande feito heróico, no qual encontraria o sentido da sua existência de homem solitário que atravessa os mares. Fusako, dona de uma boutique de luxo, herdada do marido, representa a mulher moderna, forte e independente, um modelo do espírito burguês triunfante, ao mesmo tempo competente nos negócios e tocada pela sentimentalidade afectiva, também ela marcadamente burguesa. Em Noboru, por seu turno, simboliza-se uma nova geração brilhante e cruel, destituída da vulnerabilidade do sentimento e cultora de uma visão distorcida da realidade. Assume os valores tradicionais do heroísmo, mas já sem o suporte da sociedade tradicional que lhes dava sentido, o que a conduz a uma visão niilista do mundo.

O estatuto de Ryuji é marcado por uma equivocidade inicial que será o fundamento do desenvolvimento da personagem ao longo do romance. Ryuji, ele que é um homem do mar, habituado à solidão das viagens marítimas, aspira a um grande gesto, a um acto heróico que dê sentido à sua existência. Contudo, a oportunidade desse gesto decisivo nunca lhe aparece disponível no horizonte existencial. Na verdade, ele não é um marinheiro militar em tempo de guerra, onde poderia haver lugar para a coragem e a heroicidade, mas um marinheiro mercante, um agente do mundo burguês cuja função é o prosaico transporte de mercadorias e não a realização de qualquer acto que o sublinhe como homem de honra e o nobilite aos seus próprios olhos. O encontro com Fusako funciona como um revelador da inadequação do seu projecto existencial. Nasce em si o desejo de trocar a vida no mar pela vida mais segura em terra, a integração numa família burguesa. Esta transição de um espírito heróico para um espírito conformista e burguês não deve ser lido apenas como uma metamorfose subjectiva de Ryuji, mas como o sintoma de que esse mundo da honra e da glória fundada na heroicidade já não existia. A frustração de Ryuji com o seu destino e a desistência da heroicidade é o resultado de uma transformação na ordem social, marcada pela decadência e morte dos valores aristocráticos e a vitória, dinamizada pela presença americana, dos valores burgueses, que são também, aos olhos de Yukio Mishima, valores femininos.

Fusako, a bela viúva, é aquela que vai dinamizar no marinheiro a tomada de consciência da real situação em que vive. A atracção que ela sobre ele exerce é também o apelo que a terra, enquanto símbolo de uma vida tranquila e sólida, lhe começa a dirigir. Ela é o símbolo de uma nova sociedade. Independente e cheia de sucesso profissional, mas também uma mulher em busca da dimensão afectiva, onde os sentimentos são reconhecidos e precisam de espaço existencial para se manifestarem. Esta dupla vertente de Fusako – a competência empresarial e a sentimentalidade feminina ou uma certa vulnerabilidade emocional – são também um retrato, na perspectiva tradicionalista de Mishima, do mundo burguês vitorioso no Japão. Fusako, também ela, não é apenas o retrato de uma mulher singular, mas a radiografia da sociedade burguesa do pós-guerra. Ela é a manifestação plena dos novos valores, os quais, depreende-se da leitura do romance, representam uma queda. Do Japão heróico, da sociedade onde o risco de vida e o sentido da honra dão uma orientação pelo menos à elite aristocrática, passa-se a uma sociedade que procura a estabilidade sempre necessária ao mundo dos negócios.

A personagem central do romance é, contudo, Noboru, o filho de Fusako. Ele, juntamente com os seus amigos, representa a nova geração que não se reconhece no mundo burguês e sentimental de Fusako e já não possui o respaldo de uma tradição heróica que lhe dê uma orientação. Noboru e os seus amigos são retratados, do ponto de vista intelectual, com extremamente precoces, mas emocionalmente frios, destituídos de qualquer tipo de sentimentalidade convencional, capazes da mais pura crueldade. Noboru e os amigos representam os velhos valores, mas sem o espaço onde estes poderiam ser exercidos, o que os torna violentos, com uma enorme vontade de poder e controlo dos outros. A princípio Noboru entusiasma-se com a presença do marinheiro, vê nele o homem autêntico que vive no mar, o símbolo de uma liberdade absoluta e dos grandes perigos. No entanto, a relação afectiva de Ryuji com a sua mãe, assim como a equação de deixar a vida no mar e trocá-la por uma vida estável e de conforto, invertem a visão de Noboru sobre o marinheiro. É visto, tanto por ele como pelos seus amigos, como um traidor que deve ser punido com a pena que espera todos os traidores.

Yukio Mishima serve-se de uma prosa poética com grande poder evocativo para tomar posição sobre o mundo em que vive. Um mundo onde se dá uma desprezível vitória do feminino – e é assim que Norobu vê a mãe, como alguém desprezível por ceder à dimensão sentimental – sobre um outro mundo fundado nos valores aristocráticos da honra e do heroísmo. O pior e o mais digno de punição é aquele que pertencendo à velha ordem cede à nova e se acomoda nela, como é o caso do marinheiro. Aqueles que conhecem os valores tradicionais e que um dia aspiraram à honra dos grandes feitos e agora se acomodam são traidores. Mishima, apesar desta visão crítica do novo Japão, não alimenta, no romance, qualquer expectativa de um retorno. A nova geração, mesmo que tocada pelo desprezo da moral convencional e do estilo de vida burguês, centra-se numa visão distorcida da realidade e da própria tradição. Almeja uma liberdade absoluta, assente na pura crueldade e na ausência de quaisquer outros valores, que não conduzirá a mais nada do que a uma violência sem sentido.

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Julien Green, Moïra


Julien Green (1900-1998) foi um escritor norte-americano de expressão francesa. Converteu-se em 1916, após a morte da mãe, de orientação protestante, ao catolicismo. A sua temática romanesca está ligada às grandes questões colocadas pela fé. O romance de 1950 Moïra não foge a esse interesse central do autor. O protagonista, Joseph Day, é um jovem recém-entrado na Universidade, vindo de um mundo rural, educado num estrito espírito protestante, onde o pecado, a culpa e a necessidade de redenção têm um papel central na existência do crente. A obra é dinamizada pelo conflito entre natureza e fé. Deslocado do ambiente protegido da ruralidade e da obediência quase cega à tradição, vê-se confrontado com um ambiente que está muito longe daquele onde se sente em casa, um ambiente em que os valores religiosos parecem ter pouco sentido. É neste universo estranho e adverso que o conflito entre a natureza, a sua natureza, e a fé, aquela que o move e dá sentido à sua existência, se desencadeia.

A estratégia narrativa de Green é marcada por uma deslocação da personagem central, Joseph Day, de um mundo para outro. É nesse outro mundo, muito diferente daquele onde viveu a infância e adolescência, no qual recebeu os valores que o orientam e formou as suas crenças religiosas e sociais, que aquilo que ele é vai ser posto à prova. Na economia romanesca, a universidade, a grande cidade e mesmo a casa onde se vai hospedar, e onde se hospedam outros estudantes, são espaços que representam, cada um à sua maneira, provações existenciais, partes de um universo onde ele se sente como um estranho, pois nesses lugares a cultura, os valores e as crenças são completamente diferentes dos seus. Há, na construção romanesca de Green, um exercício experimental que tem por finalidade descobrir como é que um jovem protestante, ancorado naquilo a que hoje se chamaria fundamentalismo religioso, se comporta num espaço completamente distinto daquele de onde veio e no qual adquiriu e consolidou a fé. Na verdade, é um exercício onde um Green maduro, na casa dos cinquenta anos, interroga o que poderia ter sido caso permanecesse protestante.

Como se irá comportar a natureza de Joseph Day quando deslocada do espaço onde a fé se gerou e que, pela própria estrutura social, a protegia? Esta natureza é, claro, o corpo e neste, para além e acima da força física, o sexo. É a sexualidade a mola dinamizadora da acção narrativa. Melhor é o conflito entre a libido, as pulsões sexuais, e um desejo de pureza sentido como caminho de redenção, de conquista do paraíso, de salvação da alma. O romance organiza-se através de um conflito entre dois desejos, o que impele o corpo para outro corpo e o que impele a alma para outra dimensão. O conflito nasce da incompatibilidade que as grandes religiões monoteístas determinam entre a consumação de ambos os desejos. O desejo de imortalidade impõe a repressão do desejo sexual. A consumação do desejo sexual arrasta a perdição da imortalidade.

O romance apresenta um conjunto de conflitos e alianças secundários, cuja finalidade é testar e preparar Joseph Day para o encontro com o destino. E o destino é Moïra, a filha adoptiva da senhoria, que se encontra, do ponto de vista religioso e moral, num lado completamente oposto ao de Day. Julien Green tece, com esta personagem, uma complexa trama de simbolizações que se sobrepõem e intensificam. Moïra é, como o autor referiu, um nome irlandês, o equivalente a Maria. Contudo, no romance, Moïra é uma Eva tentadora. Enquanto na tradição do cristianismo Maria é uma segunda Eva, mas uma Eva reparadora, a Maria (Moïra) do romance representa uma regressão a essa Eva primitiva que tentou Adão e com ele se perdeu. A ambiguidade da personagem é interessante, pois era possível que essa Moïra que tenta Joseph Day e o perde, perdendo-se com ele, fosse também ela reparadora, integrando-o num mundo estranho, cujas regras ele desconhecia e temia. Contudo, a ambiguidade de Moïra é mais ampla, pois, na mitologia grega, Moïra representava o destino, representava uma lei que nem os homens nem os deuses podiam transgredir e aos se deveriam submeter. E Moïra foi, de facto, o destino de Day.

No entanto, essa Moïra que o tenta, que lhe desperta a libido, que o ameaça arrastar para a perdição, não é mais do que uma projecção da sua própria natureza reprimida e recalcada na sexualidade. Nessa rapariga que o atrai condensa-se aquilo que ele é, um homem dotado de sexualidade e que, na verdade, não é capaz de compatibilizar a violência da libido desencadeada pelo objecto sexual e a violência repressiva trazida pela fé, pelos códigos de conduta que, segundo a instituição religiosa, asseguram o paraíso eterno. Como acontece numa guerra civil, também o resultado do conflito interior que se acendeu em Joseph Day, ao ser deslocado do seu espaço natural para um espaço adverso, é a destruição que, curiosamente, como também acontece após tremendas guerras civis, pode abrir ainda um caminho para uma redenção, uma outra redenção, um outro destino.

sábado, 7 de setembro de 2024

Irène Némirovsky, A Presa


Irène Némirorovsky (1903-1942) foi uma escritora russa, nascida em Kiev, de origem judia e de expressão francesa. Morreu no campo de concentração de Auschwitz. Apesar de não ter completado quarenta anos, a dimensão da sua obra é significativa, assim como a qualidade do que escreveu. O romance A Presa (La Proie) foi publicado pela primeira vez em 1936 e reflecte a ambiência da sociedade parisiense de entre as duas grandes guerras mundiais. A personagem principal é Jean-Luc Daguerne, um jovem de origem humilde que luta pela ascensão social. Daguerne inscreve-se numa enorme galeria de personagens marcadas pelo arrivismo e que animaram, com sucesso assinalável, a literatura francesa, como Julien Sorel, de O Vermelho e o Negro, de Stendhal, ou Eugène de Rastignac, de Le Pére Goriot e de outros romances de La Comédie humaine, de Balzac. Daguerne, como a generalidade das personagens do romance ocidental, se não universal, é uma das infinitas possibilidades inscritas no denominado cogito cartesiano.

Descartes rompe não apenas com a filosofia tradicional, mas com a concepção de homem das sociedades tradicionais. Cada ser humano dependia da casta e do mundo a que pertencia. O cogito, ao colocar o sujeito que pensa como fundamento de todo o conhecimento, deslocou, ao mesmo tempo, a posição do homem, abrindo caminho para a afirmação do indivíduo e a sua emancipação do espaço social a que pertencia pela origem. Contudo, fê-lo à custo do esvaziamento desse sujeito. O sujeito que pensa do cogito cartesiano é, na verdade, um lugar vazio, alguém sem história nem biografia. Esse lugar vazio torna-se o campo que o romance moderno vai preencher com as suas personagens, envoltas nos dramas da procura de si ou da afirmação social perante os outros, numa busca infinita de reconhecimento. O Jean-Luc Daguerne de Irène Némirorovsky é mais uma dessas variações, que é, ao mesmo tempo, semelhante e diferente de todas as outras.

Como acontece geralmente nos processos de arrivismo social, as relações humanas são marcadas por uma visão meramente instrumental do outro. O que está diante do arrivista é categorizado ou como obstáculo, se se interpõe aos seus desígnios, ou como alavanca, se é um adjuvante no processo ascensional, havendo a possibilidade, em conformidade com os interesses de momento, de um obstáculo se transformar em alavanca e vice-versa.  É assim que Daguerne categoriza e usa as pessoas que com ele se relacionam, seja no campo amoroso, seja no campo da amizade, seja no campo político. Há uma falência moral que faz do outro uma mera coisa, falência que nenhum imperativo categórico tem o poder de pôr cobro. No jogo social da França – e, por certo, da generalidade dos países ocidentais – de entre as duas grandes guerras, o respeito pelo o outro, o seu tratamento como um fim em si mesmo, são puras ficções, que os arrivistas, como Daguerne, não sentem qualquer necessidade de dar atenção. Ainda por cima, num mundo social composto apenas por arrivistas, que só se diferenciam por terem chegado mais cedo ou mais tarde ao cume social.

O romance de Némirovsky é uma crítica ácida da sociedade burguesa, não no sentido do realismo socialista ou do neo-realismo, que a olham a partir de uma perspectiva da luta de classes, mas de uma perspectiva mais universal, onde se torna patente o ethos negativo dessa manifestação do humano, o qual se centra no interesse próprio, na necessidade de consolidar uma aliança contínua entre a ambição pessoa e o poder, para que este solidifique a natureza fluida e precária de toda a ambição. Esta crítica da sociedade burguesa e do individualismo acaba por estimular no leitor uma nostalgia de uma sociedade tradicional, em que, supostamente, o arrivismo estava limitado e as relações humanas seriam mais autênticas, embora essa autenticidade de que se tem nostalgia não seja mais do que uma mera fantasia fundada na atracção que o mistério do passado exerce sobre o espírito sujeito à crueza da vida moderna.

A decadência moral e social relaciona-se com uma visão negativa do mundo da política. Este não é o da defesa do bem comum, preocupado com a comunidade e a sua persistência, mas um jogo que visa assegurar os interesses particulares de alguns. A política é vista como um jogo cujas regras estão longe de ser as da lei. A autora dá-nos uma visão bastante crítica do final da Terceira República (1870-1940), que era, e ainda é, o regime francês mais duradouro desde a Revolução Francesa de 1789. Submissão aos interesses pessoais, manipulação, corrupção, cinismo dos agentes, falta de convicções e de ideais. Figuras como Abel Sarlat, banqueiro, com profunda influência no cenário político e sogro de Daguerne, ou Calixte-Langon, um ministro das Finanças ambicioso e manipulador, representam as elites sociais e políticas que manifestam a decadência do regime.

O título do romance A Presa resume na perfeição a essência da narrativa. Encontramo-nos num universo hobbesiano, onde o homem é o lobo do homem, isto é, cada um pode ser uma presa. A instrumentalização das relações pessoais, a transformação das pessoas em obstáculos e alavancas, torna-as, ao mesmo tempo, em predadores e presas, acabando por serem as duas coisas. Jean-Luc Daguerne o predador acabou por ser a presa de si mesmo, da sua ambição, como também, por exemplo, Abel Sarlat. A reflexão de Némirovsky é interessante também porque torna patente que o predador acaba por se predar a si mesmo, destruindo o seu ser, a sua vida interior, nesse processo de devorar os outros em busca de sucesso, tornando a sua existência em busca de poder e glória numa insignificância. O preenchimento do vazio trazido pelo cogito cartesiano na afirmação da subjectividade como fundamento do conhecimento e, por extensão, da existência, conduz inexoravelmente ao niilismo.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Ursula K. Le Guin, Do outro lado do sonho

 

Publicado originalmente em 1971, nos Estado Unidos, com o título de The Lathe of Heaven, foi agora, Março de 2024, editado pela Relógio de Água com o título Do outro lado do sonho. Contrariamente ao que o título português deixa transparecer, o romance de Ursula K. Le Guin não é uma exploração das realidades oníricas, dos processos dos sonhos ou dos níveis inconscientes dos indivíduos, mas uma reflexão sobre a ética, as utopias e as consequências destas, um confronto entre o homem médio, conservador, e o génio focado na melhoria do mundo. O sonho entra na história como um dispositivo que permite a criação de mundos alternativos, como fruto dos sonhos utópicos da humanidade. George Orr é levado a tratamento compulsivo por ter sido apanhado num consumo excessivo de drogas, abastecendo-se num dispensário estatal mesmo com cartões emprestados. Ora, Orr sofria de um problema que o conduziu à procura de substâncias que evitassem que sonhasse. Descobrira um estranho poder dos seus sonhos. Estes alteravam a realidade, adequando-a ao que sonhara, sem que ninguém, para além do sonhador, desse por isso.

As alterações da realidade estavam longe de ser apenas benevolentes. O fundo inconsciente produtor de sonhos não se deixava capturar. Não apenas os sonhos eram imprevisíveis, como eram imprevisíveis as suas consequências. Contudo, não era apenas isso que torturava Orr. Ele, o mais mediano dos homens, achava que não tinha direito a alterar a realidade. Perturbava-o que a sua faculdade de sonhar se arvorasse numa espécie de deus irrequieto e imponderado. As drogas que procura e toma visam suspender a capacidade de sonhar e a subsequente alteração do mundo. O que está em jogo, em George Orr, é um conflito ético sobre quais devem ser os limites do humano. Aquilo que pode ser percebido como um poder excepcional – e, ilusoriamente, caso fosse domesticado, uma dádiva – é percebido como um ultrapassar dos limites, um confiscar dos poderes de Deus – ou da natureza – para moldar a realidade aos seus próprios desejos. Mesmo que Orr não tenha a capacidade de planear os sonhos e prever os seus efeitos, sabe-se que, numa interpretação psicanalítica, os sonhos são a expressão de desejos e conflitos recalcados. O senso comum – George Orr é um representante desse senso comum – é avesso a qualquer experimentação social, a qualquer alteração radical da realidade, e é isso que os seus sonhos representam.

A preocupação de Orr com o seu poder de alterar a realidade é também uma preocupação com a estabilidade da linha do tempo. Os seus sonhos não apenas criavam futuros imprevisíveis, como alteravam o próprio passado. A liquefacção do tempo, onde a sua fluidez habitual, com a cadeia de causas e efeitos que, de algum modo, podem ser calculados ou, pelo menos, esboçadas as consequências, introduz um princípio de incerteza numa esfera da realidade que não é governada por esse princípio. Conforme os sonhos vão acontecendo e a realidade se vai alterando, incluindo a realidade do passado, as pessoas podem acumular memórias conflituantes, o que fará perigar um elemento central da psicologia humana, a identidade de cada um. A identidade de si depende, em grande medida, das suas memórias, do modo como elas foram consolidadas através de narrativas que harmonizam dissensões e resolvem, ou evitam, conflitos. A alteração que o sonho de Orr tinha o poder de induzir no passado, criando, a cada sonho, um novo passado, tinha efeitos colaterais terríveis na identidade dos seres humanos, que é um dos bens que o homem comum tem em maior conta. Ele é a sua identidade e é proprietário dessa identidade. É insuportável tudo o que crie fracturas na identidade e não haverá coisa que tenha mais poder de fracturar uma identidade do que a existência de memórias conflituais do passado, motivadas pela existência incompreensível de diversos passados.

O outro lado do romance de Ursula Le Guin – talvez, a questão central – tem o seu núcleo no Dr. William Haber, psiquiatra e director do Instituto Onirológico do Oregon. É a ele que cabe tratar Orr. Quando se apercebe do poder deste, quando compreende que é real e não uma mera ilusão, não resiste à tentação de melhorar o mundo, usando os sonhos do seu paciente. Giza um plano de domesticação da faculdade de sonhar de Orr, para que a possa orientar para os fins supostamente benévolos que o habitam. Ao contrário do homem comum, Haber é um representante puro do Iluminismo, da transformação do mundo através da ciência, neste caso da ciência dos sonhos, e da tecnologia dependente dessa ciência (ele criou um dispositivo, o aumentador, para ampliar os sonhos do paciente e os seus efeitos). Em Haber, Le Guin condensa a panóplia de visionários políticos e sociais que transportam em si sonhos e utopias de transformação da realidade social a partir da vontade de vanguardas revolucionárias, que pretendem acelerar o tempo, substituindo as reformas sociais paulatinas pelas drásticas alterações da realidade política e social.

O romance não representa um conflito entre o homem moderno, racionalista e crente na tecnologia, e o homem tradicional submetido aos encantamentos do mito e à tradição religiosa. O conflito, apesar do romance ser de 1971, é aquele que hoje se tornou muito claro nas sociedades ocidentais, entre o homem comum e o homem com forte formação intelectual, que pensa poder dispor do mundo à sua vontade. De algum modo, o romance representa a vitória desse homem comum sobre o homem filho do Iluminismo, a vitória do senso comum sobre uma razão que se desvia desse sentido comum para servir desejos que, benévolos, na sua aparência, são a origem de mundos distópicos, onde o ser humano é destruído na sua própria natureza, ao ser destruída a sua identidade. Se nós olharmos as experiências totalitárias do século XX percebemos muito bem como, em cada uma delas e em nome de um outro mundo melhor, a identidade humana era sistematicamente destruída. Le Guin, no fundo, retoma a ideia leibniziana de que este é o melhor dos mundos possíveis. Todas as alternativas a este mundo são piores. Isto não significa que este mundo seja imóvel e não exista mudança, mas esta deve-se inscrever dentro dos limites do próprio mundo e não na utopia de um outro radicalmente diferente.

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Knut Hamsun, À Porta do Reino (Ved Rigets Port)

 

Não traduzida em português Ved Rigets Port (À Porta do Reino) é a primeira peça de uma trilogia centrada na figura de Ivar Kareno, um jovem filósofo que pretende manter-se fiel à radicalidade do seu pensamento, influenciado por Nietzsche, e em confronto com a filosofia de origem britânica. As outras duas peças são Livets Spill (O Jogo da Vida) e Aftenmde (Crepúsculo). Existe uma edição francesa, da editora Actes du Sud, que reúne as três peças. Em À Porta do Reino, a tensão dramática gira em torno do tema da fidelidade. Esta é tratada em diversos níveis, desde a fidelidade matrimonial, o nível mais baixo e menos relevante na peça, a fidelidade entre amigos e a fidelidade a si mesmo, o tema central que fundamenta os outros níveis de fidelidade.

A fidelidade a si mesmo, contudo, é a fidelidade às suas ideias, à visão que se tem do mundo. Ivar Kareno, como acontece, não poucas vezes no mundo do pensamento, pretende representar uma ruptura com aquilo que está estabelecido. Vive centrado na produção e publicação de uma obra que, imagina, abrirá novos horizontes, obra que põe em causa o pensamento e a influência do professor Gylling, um reputado e respeitado filósofo e professor. Casado com Elina, Ivar Kareno, tem o casamento à beira da ruptura. Por um lado, a incapacidade de sustentar a família, pois a sua obra é recusada pelo editor, que não está disponível para publicar uma obra radical e um ataque a Gylling. Por outro, pela pouca atenção que dá à sua mulher, a qual se sente abandonada, pela excessiva preocupação de Ivar com a obra. A fidelidade a si é uma fidelidade, de natureza fundamentalista, às suas ideias radicais, que nem o perigar do casamento, nem a bancarrota do casal, o levam a pôr em causa, em amenizar a crueza do pensamento de uma juventude ainda imatura, como sugere o Gylling.

Essa intransigência com as ideias emerge numa outra situação. Carter Jerven, um amigo de Kareno e que com ele partilha uma nova visão do mundo, acabado de se doutorar, empresta-lhes dinheiro para este evitar a bancarrota de Ivar a penhora dos seus bens. Este acaba por aceitar. Contudo, ao descobrir que a tese de doutoramento do amigo trai os princípios em que ambos acreditavam, ao perceber que, de algum modo, Jerven cedeu para encontrar um caminho para a sua carreira, devolve o dinheiro. Esta devolução e as razões apresentadas têm um efeito inesperado na vida de Jerven. A noiva, perante a recusa de Kareno em aceitar o dinheiro, rompe a relação. Jerven tenta, em nome da amizade, que Kareno aceite a sua ajuda, pois isso salvaria a sua ligação Mademoiselle Hovind, a noiva. Contudo, Ivar Kareno mantém-se intransigente. As suas ideias valem mais do que a amizade, ainda por cima a amizade de um homem que traiu os seus ideais de juventude.

Também o casamento de Ivar e Elian entra em crise. A situação financeira e, fundamentalmente, a pouca atenção que Ivar dá à mulher abrem o caminho para que Endre Bondensen, um jornalista influente e sedutor, atraia Elina, já desesperada pelas suas tentativas infrutíferas para levar a que o marido permita uma solução para a degradada situação financeira em que vivem, para que ele aceite a ajuda dos pais dela ou para que siga os conselhos do professor Gylling, os quais levariam à publicação da obra de Kareno pelo editor. A intransigência do jovem filósofo é total, e mesmo a ameaça de infidelidade da mulher é inútil para o fazer mudar de atitude. O casamento pode desfazer-se, o importante, porém, é que o autor seja fiel a si, isto é, às suas ideias e à sua radicalidade.

A peça de Hamsun explora uma ambiguidade na ideia de fidelidade a si. Ivar Kareno é, na verdade, fiel a si mesmo ou fiel a uma visão do mundo, a um conjunto de ideias e a um projecto de as impor destruindo outras visões do mundo? Será essa fidelidade uma relação autêntica consigo mesmo ou não passará de uma intransigência motivada por um conjunto de ideias abstractas, fruto de um ego inflacionado? Não é claro, nesta primeira peça, o estatuto de Kareno. Será um herói ou um bufão imaturo e incapaz de compreender o mundo? As relações concretas de amizade e de amor são trocadas pela fidelidade a essas ideias. Os outros – no caso, a mulher Elina e o amigo Carter Jerven – têm, claramente, menos valor, aos olhos do candidato a filósofo, do que essas ideias, pelas quais está disposto a enfrentar a pobreza e o abandono. O caminho de Ivar Kareno está em aberto e isso será explorado nas outras duas peças da trilogia.

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Maria Isabel Barreno, Crónica do Tempo

 

Publicado em 1990, o romance Crónica do Tempo, de Maria Isabel Barreno, contém no título uma dupla referência à temporalidade, na palavra crónica e na palavra tempo. Como na crónica dos reis, também no romance de Maria Isabel Barreno existe uma narrativa cronológica onde a personagem principal é o próprio tempo, ou, melhor, o espírito do tempo, aquilo a que os alemães chamam Zeitgeist. Não se trata, todavia, de uma reflexão romanesca sobre a natureza do tempo, mas da observação dos seus efeitos sobre uma família desde os finais da República, início do Estado Novo e consolidação do poder de Oliveira Salazar até aos anos oitenta do século XX. Trata-se de uma crónica tanto da conformação que o tempo impõe aos indivíduos, moldando-lhes as possibilidades e os horizontes, delimitando-lhes, com rigor, as suas possibilidades de figuração, como do processo de destruição que esse mesmo tempo traz consigo, uma crónica de sucessivas derrocadas.

A obra inicia-se com a descrição de uma entrevista de Ângela, uma jornalista em reciclagem da sua persona profissional e pública, coisa corrente nos anos oitenta, a Jorge, um velho empresário retirado do mundo dos negócios, alguém que veio do nada e se tornou, no tempo da ditadura, um homem de influência, uma personagem nas classes médias altas de Lisboa. Ela estava a escrever sobre os homens de negócios que, antes do 25 de Abril, teriam poder. A desconfiança entre ambos (ao verem-se, ele sentiu malevolência; ela, repulsa), a incompreensão e os preconceitos que, perante o outro, nascem na mente de cada um são apenas o sintoma de uma distância geracional, a que o tempo cortou as pontes para que se pudessem compreender. A função diegética da entrevista é a de sublinhar, logo no início do romance, o conflito entre gerações moldadas por tempos diferenciados, o que introduz nas suas relações não apenas o fantasma da incompreensão ou a sombra de uma comunicação distorcida, mas um princípio irremissível de incomunicabilidade.

Jorge faz a sua fortuna em África, mas Isabel Barreno evita o estereótipo do capitalista explorador, do homem que se aproveitou da submissão dos povos africanos para triunfar na vida. Pelo contrário, Jorge é, desde o início, um opositor à visão de Salazar para as colónias, embora não partilhe a visão anticolonial que, a partir de certa altura, foi a da esquerda. Jorge é uma personagem consistente. Aliás, ele e a mulher, Manuela, são as duas personagens mais consistentes do romance, mais que os filhos e os netos, como se eles viessem de um tempo em que as pessoas tinham uma densidade existencial que as transformações sociais e políticas vieram rasurar. O casamento entre ambos, provenientes de meios sociais muito diferentes, ele do bairro popular da Graça, em Lisboa, filho de um porteiro do Ministério, ela dos meios monárquicos, embora pertencendo a uma família empobrecida pela incúria do pai, nunca funcionou, mas nunca se dissolveu. Aliás, é em torno da comemoração dos 50 anos desse casamento que gira parte substancial da narrativa. Esse fracasso emocional do amor foi compensado pelo compromisso com a instituição e construção de uma família. Isto surge como contraste aos casamentos dos filhos, daqueles que se casaram, que são muito mais frágeis e sujeitos ao espírito do mundo e do tempo.

A autora cruza a história pessoal e familiar com a história do país e deixa perceber as cicatrizes que as metamorfoses sociais e políticas deixam nas personagens. Essas cicatrizes manifestam-se na incomunicabilidade geracional. Jorge e o filho Diogo têm entre eles uma barreira que parece inultrapassável. Diogo não perdoa ao pai de o ter livrado, usando a influência pessoal e económica, da guerra colonial. Essa libertação é sentida como uma pesada herança que lhe limitou a liberdade de fazer escolhas e de correr riscos por sua própria conta. Diogo é o típico intelectual oposicionista, mergulhado nas crises académicas e, após o 25 de Abril, vivendo de uma rememoração do que foi e do que deveria ter sido no pós-revolução. Tanto na geração de Jorge e Manuela, como na dos filhos – embora sentida de modo diferente por Diogo, Carlota e Rosa –, existe uma consciência de que se possui uma responsabilidade perante o devir histórico. É essa consciência que vai desaparecer na geração dos netos. As novas gerações cultivam o pessimismo perante a história, e o seu horizonte existencial é o hedonismo simbolizado no culto da noite.

Crónica do Tempo é um romance marcadamente lisboeta. Lisboa é o cenário dessa história que cruza o indivíduo e a comunidade, a família e a sociedade. Isabel Barreno, em diversos passos, torna patente as transformações da capital portuguesa, transformações que acompanham as transformações políticas, mas também as metamorfoses da sociedade, a evolução das classes sociais e as mudanças no espectro cultural. É verdade que, no romance, também África aparece retratada, na relação de Jorge com esse universo onde fez fortuna. Contudo, na economia da obra, a cidade de Lisboa é o palco das tensões e dos confrontos familiares, dos conflitos e das mudanças sociais, das transformações existenciais. É numa rua de Lisboa que, perante o desabar de uma tempestade, Jorge e Manuela sentem, por uma única vez, que poderiam ser um casal efectivamente realizado, unido por laços que ultrapassariam o mero contrato do casamento, um casal ligado pelo amor. Tudo o que é decisivo no romance passa-se em Lisboa e diz respeito a Lisboa.

O tempo, porém, é a personagem principal do romance de Isabel Barreno. Por isso, a crónica não é sobre Jorge, mas sobre o tempo, como ele vai esculpindo as personagens e os seus conflitos, como traz a mudança e as rupturas à sociedade, aos desejos, às crenças e aos modos de vida. Cada nova geração parece ser mais filha do tempo do que da geração anterior. O romance traça um percurso não apenas no espaço lisboeta, mas em cerca de setenta anos de história do país e dos indivíduos. A autora capta essa complexidade de Cronos através de uma narrativa não linear, com o recurso à memória dos mais velhos, ao exercício da analepse, à reflexão sobre o sentido de uma vida ou dos acontecimentos sociais e políticos. O tempo trouxe os personagens e o tempo os levará, assim como traz e leva as configurações sociais, culturais e políticas, bem como os desejos, esperanças e ilusões de cada um. O tempo configura o espaço e desenha-lhe as metamorfoses. Ele é o senhor absoluto, que torna tudo em que toca relativo. O romance de Barreno ecoa, de um modo bem lisboeta, esse título magnífico de uma obra de Marguerite Yourcenar, O Tempo, Esse grande Escultor.

domingo, 19 de maio de 2024

Friedrich de la Motte Fouqué, Ondina

A publicação de Ondina data de 1811. Trata-se de um romance do escritor alemão Friedrich de la Motte Fouqué (1777-1843). Na verdade, é uma espécie de conto de fadas, cuja heroína é um espírito elementar das águas, uma ninfa. É também a história de um triângulo amoroso, passada num tempo indeterminado, mas cujos indícios narrativos parecem apontar para a Idade Média, esse tempo em que havia cavaleiros que disputavam torneios, como Huldbrand, outra das personagens principais da história, e poderosos duques que detinham o poder em certas áreas. O autor insere-se no romantismo e este conto de fadas tem, claramente, motivações românticas. A obra teve múltiplas adaptações para ópera, de onde se podem destacar as de E. T. A. Hofmann, Piotr Tchaikovsky, Antonín Dvořák e Sergei Prokifiev. Contudo, a influência desta obra de La Motte Fouqué não se fica pela ópera. Música erudita, bailado, cinema, literatura, pintura e escultura são outras áreas em que diferentes artistas trabalharam sobre a história de Ondina.

<O primeiro grande tema da obra é a conquista da alma. A inspiração provém, talvez indirectamente, do ocultista Paracelso. Este afirmara, no Livros sobre as ninfas, que as ondinas poderiam ganhar uma alma imortal se se casassem com um ser humano. A questão, porém, pode ser mais do que uma história maravilhosa, onde se cruzam seres de mundos diferentes, como é o caso. É possível fazer uma leitura do romance como uma ilustração de um processo tipicamente humano. No homem, mais do que dada, a alma deveria ser conquistada e conquistada através do amor. Não é o cavaleiro Huldbrand, com quem Ondina casa, nem a rival e amiga de Ondina, Bertalda, que são os arquétipos humanos, mas a ninfa, o espírito das águas. Como ela, todos os seres humanos provêm desse mundo elementar das águas e, ao nascer, abandonam a existência intra-uterina e são lançados no mundo para conquistarem uma alma imortal. Esta leitura do romance, permite contrastar a visão pagã da alma e a visão cristã, na qual a alma imortal é dada, mas precisa de ser salva. De um lado, há uma alma que pode alcançar ou a beatitude ou o castigo, ambos eternos. No outro, a imortalidade da alma é uma conquista a realizar. É plausível pensar que os antigos romances de cavalaria tratavam, através de aventuras alegóricas, essa conquista interior de uma alma que disporia o indivíduo para a imortalidade.

<O segundo grande tema da obra está relacionado com a natureza do compromisso amoroso. O casamento de Huldbrand com Ondina não era apenas uma modalidade de compromisso que fornecia a esta a possibilidade de conquistar uma alma imortal. Trazia para o cavaleiro um perigo mortal. A fidelidade está ligada a um pacto que não poderia ser dissolvido. A trama romanesca vai girar em torno de um triângulo amoroso. Huldbrand é impelido para o lugar onde encontra Ondina pelos desejos de uma bela dama, filha adoptiva de uns duques, Bertalda. Ao deparar com a ninfa, apaixona-se por esta e casa com ela. Quando retorna casado, a figura de Bertalda não desaparece. Pelo contrário, acompanha o casal, tornando-se amiga da rival. Ondina tenta evitar que o mundo elementar interfira na sua vida e na do marido, que se vai deixando reconquistar por Bertalda. É um difícil equilíbrio entre as paixões amorosas e os deveres de fidelidade, tudo isso mediado pela presença do mundo elementar e de um dos seus representantes, um espírito das águas, tio de Ondina, que não vê com bons olhos a atracção entre Huldbrand e Bertalda, estando sempre disposto a vingar a sobrinha. Quando Huldbrand, conhecedor já de que Ondina não seria humana, a repudia, ela volta para o seu mundo, mas a partir daí o cavaleiro corre um grande e decisivo risco, se casar com Bertalda, sem que Ondina tenha morrido.

Este conto maravilhoso é uma exploração romanesca da condição humana, uma viagem à sua constituição, aos elementos que fazem de um ser vindo do mundo líquido intra-uterino um ser humano, com uma alma imortal, isto é, com um horizonte existencial que está para além da mortalidade do animal humano. Esta exploração simbólica da ontologia humana está intimamente relacionada com a questionação do amor, com a análise poética dos laços fundamentais que ligam dois seres, os quais, ao casarem, não estabelecem apenas um pacto civil, um contrato para partilha da vida e dos prazeres eróticos, que, reciprocamente, marido e mulher permitirão ao cônjuge. O casamento é uma alteração ontológica daqueles que se casam, os quais, na verdade, se devem fundir e ser apenas um. A infidelidade não é uma mera quebra de um contrato, mas uma dissolução existencial do ser que tinha emergido do casamento. E aqui, a obra de La Motte Fouqué desagua na torrente romanesca ocidental em que o amor e a morte surgem intimamente ligados. 

terça-feira, 14 de maio de 2024

Dino Buzzati, O grande retrato


O Grande Retrato não é, por certo, o mais conhecido dos romances do italiano Dino Buzzati (1906-1972), autor de O Deserto dos Tártaros, a sua obra emblemática. Por norma, vê-se em O Grande Retrato a única incursão do autor na ficção científica. Há quem observe, e não sem razão, que se está perante a primeira obra que aborda, avant la lettre, os problemas que a inteligência artificial (IA) viria a colocar, a exploração da ténue fronteira entre o humano e a máquina. Se as leituras prospectivas (as que vêem o romance ou na óptica da ficção científica ou na da IA) são as correntes, a que se propõem aqui recoloca a obra no cruzamento de duas tradições que emergem no início da modernidade ocidental, a filosofia e o romance, com as figuras de René Descartes e de Miguel de Cervantes.

Um professor universitário é convidado, pelo Ministério da Defesa, a participar num projecto de investigação, no âmbito militar, integrando uma equipa de cientistas já no terreno. Nada sabe do projecto e, apesar das especulações a que se entrega, só lhe resta aceitar ou declinar o convite na mais absoluta ignorância. Só saberá do que se trata quando, juntamente com a mulher, chegar ao local. O projecto centra-se na construção de um super-computador dotado de consciência. Não se trata de criar apenas uma máquina que consiga fazer enormes cálculos de forma rápida, mas que possua consciência de si, uma máquina que diga eu.

Quem conhece minimamente a filosofia de Descartes está familiarizado com o denominado cogito cartesiano. O sujeito apreende-se como puro pensamento. Um sujeito desencarnado, para quem é necessário encontrar uma ligação ao corpo, o qual, no entanto e apesar do sentimento irresistível da sua existência, não é possível conhecer racionalmente. Este sujeito desencarnado, que em Descartes é resultante da aplicação da dúvida metódica aos fundamentos do conhecimento tradicional, é agora reactivado nesta ideia de um super-computador dotado de consciência. Não se trata, porém, da radical inexistência de um corpo. Este eu tem, pelo contrário, um gigantesco corpo físico, que lhe assegura a vertiginosa velocidade do seu poder calculador. Não tem, contudo, um corpo de carne, que permita o movimento e a expressão do desejo e do afecto.

Esta separação entre a dimensão física do corpo e a dimensão biológica vai desempenhar uma papel central no desenlace da narrativa de Buzzati. O problema não está tanto no facto da máquina possuir consciência de si, mas de possuir a consciência de uma pessoa já morta, a mulher de um dos construtores do projecto, que, apesar das infidelidades da mulher, sempre esteve apaixonado por ela. O projecto militar era a sua grande oportunidade de a trazer de volta, mas agora presa à terra, presa a um corpo de betão e ferro, num lugar ermo e secreto, o paraíso de todos os amantes. Um corpo rigidamente físico, sem o dom do movimento, e uma consciência pessoal, dotada de sentimentos e de tudo aquilo que uma consciência viva e vivida possui.

É aqui que entra a outra tradição da modernidade europeia, a tradição romanesca, tradição essa que começa em Cervantes e que se vai multiplicar em inúmeras linhas de desenvolvimento. Em algumas dessas linhas o desejo - o desejo erótico - tem um papel central. E é este desejo erótico que retorna a esse eu reencarnado num gigantesco aparato mecânico, sem capacidade de viver segundo os princípios que animam a biologia humana. A consciência infiel, ao reencarnar num corpo não biológico, torna-se consciência infeliz. E a infelicidade pode ser um passo decisivo para uma consciência malévola e vindicativa.

Quando se olha para esta obra de Dino Buzzati a partir da sua inserção no domínio da ficção científica perde-se de vista o essencial da obra, a exploração duma consciência humana exilada do corpo de carne, duma consciência ancorada num corpo físico mas, na verdade, desencarnada. Se há alguma coisa em jogo nesta obra não será, por certo, a Inteligência Artificial, mas a exploração dos limites de uma subjectividade desencarnada. Não podemos esquecer, ao lermos O Grande Retrato, o pano de fundo não apenas filosófico e romanesco onde se inscreve a obra, mas também o cultural e religioso. A obra inscreve-se numa cultura cuja religião assenta no mistério da encarnação de Deus. Ora se o próprio Deus sentiu necessidade de tomar um corpo de carne, como seria possível uma consciência desligada da carne, dos seus prazeres, dores e paixões? Como é que essa desencarnação poderia ser bem recebida por uma consciência de si tão marcada pelo movimento e pelo desejo?

Dino Buzzati (2010). O Grande Retrato. Cavalo de Ferro Editores. Tradução de José Luís Costa.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Fritz von Unruh, O Caminho do Sacrifício

Fritz von Unruh (1895-1970) pertencia a uma família da alta nobreza prussiana, ligada ao mundo militar. Filho de um general, também ele enveredou pela carreira das armas, que abandonou em 1911, para se dedicar à literatura, mas à qual regressou em 1914 com o desencadear da primeira grande guerra. O romance O Caminho do Sacrifício começa por ser uma obra encomendada pela hierarquia militar alemã, para exaltar o espírito heróico alemão numa crónica da batalha de Verdun, onde o autor participa. O romance tem duas versões, uma primeira, ainda no espírito da exaltação patriótica, e uma segunda, a definitiva publicada em 1919, portanto, já depois da guerra acabar. Esta versão é o resultado da evolução do autor, a partir de 1916, em direcção ao pacifismo, influenciado pelo espectáculo de uma guerra onde o combatente perde a sua individualidade e se funde na massa que se afoga no sangue provocado pelo desencontro entre o poder técnico das novas armas e as concepções estratégicas tradicionais. Em vez da exaltação patriótica das virtudes militares, está-se perante uma viagem para o calvário, para o lugar do sacrifício, embora sem que se percebe para que fins salvíficos servirá a expiação daqueles homens.

A orientação expressionista do romance afasta-o das visões realistas de muitos romances focados na primeira grande guerra. O pathos linguístico é uma estratégia – não poucas vezes lírica – para tornar manifesto o absurdo em que aqueles homens vivem. A obra está dividida em quatro partes: (1) A aproximação; (2) As trincheiras; (3) O assalto; (4) O sacrifício. Esta composição sugere uma tragédia em quatro actos, nos quais se assiste não apenas à aproximação e chegada ao centro do combate, mas também à metamorfoses da consciência dos combatentes. O romance desenha um caminho que vai desde o fervor patriótico que conduz os homens para a guerra até ao confronto com a morte e a ausência de significado dessa morte. É plausível pensar que essa metamorfose das consciências seja a do próprio autor, o seu caminho de militar patriótico que retorna ao serviço para ir combater, isto é, servir os desígnios da nação, até ao pacifista em que se torna, perante a experiência absurda da batalha de Verdun.

Na primeira parte, A aproximação, é possível ler o discurso de um capitão para um voluntário: À saúde de todos os voluntários! Tive sob o meu comando uma companhia de estudantes. A flor da juventude foi arrastada pela gloriosa tempestade do povo, como uma explosão de júbilo primaveril. Quando o nosso canto se extinguiu, os campos resplendiam de brancura e claridade. Enterrámos belos corpos. Mas sentíamos: o fruto maduro há-de vir um dia. Será grande a colheita! A poeticidade com que a morte é descrita, apesar da ironia que nela já se faz sentir, culmina com a expectativa de uma grande colheita, como se os mortos fossem sementes que, ao morrer, se multiplicariam sem fim. Ou quando um dos militares escreve para a mulher: Sabes o que este mar significa para o combatente? A ofensiva, pressentimo-la; mas e para lá da procela? Minha querida, adivinhas o que me atrai lá longe sob o sol benfazejo? Tu sabes. Oh, pudesse eu antes beijar a penugem dourada do meu bebé! A liberdade por que lutamos, há-de ele respirá-la. Deus abençoe o teu corpo; se for rapaz, cria-o livre e justo. Também aqui se desenha um princípio de esperança, a crença que haverá um além da guerra e uma a justiça que esta, supostamente, trará consigo.

A obra conta a história de um grupo de militares que são figuras arquetípicas de todos aqueles que fazem o caminho da retaguarda para a frente. A esperança move-os. O decorrer da acção, a chegada ao lugar de combate vai desligar a conexão ideológica entre esperança e guerra. A esperança inicial torna-se, na parte final, a constatação de que toda a guerra é um exercício niilista e não o lugar onde se manifesta o valor supremo da heroicidade: Quando a manhã pôs a nu o horror do campo de batalha, Fips ergueu-se do seu buraco de granada e mediu com o olhar a imensidade da mutilação: «Salvo o devido respeito pelos nossos veneráveis ideais, pergunto: porquê? Primeiro a aproximação furtiva, depois um alarido extraordinário e - passado tudo isso - que ficou? Praticamente nada, além de uma assembleia muda onde já ninguém tem voz. Porque tombastes? Por Verdun? Permiti-me então que vos faça uma declaração póstuma: teria preferido que Verdun caísse e não vós!» A ironia é agora tenebrosa, nela não existe qualquer esperança, nem se vê naqueles mortos a semente de uma grande colheita, nem são pintados como paladinos da liberdade. São apenas mortos que perderam a voz numa assembleia muda.

Fritz von Unruh rompe, no seu romance, com o elo entre o sacrifício e a salvação. Fá-lo recorrendo a estratégias narrativas diversas, pondo na boca das personagens discursos que vão do lirismo poético à reflexão filosofante, por vezes, raiando a mística. Esta combinação discursiva de poesia, filosofia e mística é o operador que permite dar a ver a guerra na sua crueza, que a mostra não como uma grande cerimónia religiosa de superação de si e de salvação, mas o exercício de potências maléficas que se manifestam na ausência de sentido daqueles actos que levam a morte a inimigos que, na verdade, nunca fizeram mal a quem os combate. O horizonte do sacrifício na guerra, naquela guerra em particular, é a expiação de um mal de que se desconhece a real origem, pura perdição do corpo entrega à morte e da alma que perdeu a capacidade de encontrar sentido entre aquilo que não o tinha. 

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Silvina Ocampo, A Promessa

 

A escritora argentina Silvina Ocampo (1903-1993) apenas escreveu um romance, A Promessa, que, aparentemente, deixou inacabado, tendo sido publicado postumamente. Começou a escrevê-lo em 1960, mas a certa altura a doença ter-se-á intrometido no projecto. A edição portuguesa, da responsabilidade da Antígona, data de 2023, com tradução de Helena Pitta. A obra é, em aparência, uma exploração da natureza fluida tanto da vida como da memória e é desencadeada por uma queda, essa situação mitológica que abre o horizonte onde se desenrola a vida e a morte. Trata-se de uma queda prosaica da narradora e protagonista, da qual não se sabe o nome e pouco da sua situação. No entanto, a essa queda corresponde uma salvação, da qual se suspeita a intermediária, mas não o modo. Quando se deslocava, num transatlântico, para a cidade do Cabo, para se reunir com a parte menos enfadonha da minha família, ao debruçar-se sobre a amurada do navio, caiu ao mar, sem que ninguém a visse. O livro é o resultado de uma promessa a Santa Rita, a das causas impossíveis: Não esqueci o pormenor desta atitude quando lhe fiz a promessa de, caso me salvasse, escrever este livro e de o terminar até ao dia do meu próximo aniversário.

O romance começa com o problema da narradora acerca da possibilidade de publicar o texto, interrogando-se sobre que editora o iria publicar. Isso só seria possível se acontecesse um milagre e ela acredita em milagres. Esta preocupação é o sinal de que o impossível tinha já acontecido. Apesar de ter caído ao mar sem que ninguém desse por isso, ela ali estava preocupada com a publicação e recorrendo mais uma vez aos serviços da Santa Rita. A inverosimilhança da situação narrada, a da salvação de alguém que cai em alto-mar sem que ninguém dê por isso, é contrabalançada com o recurso à intervenção milagrosa de uma santa que tem por missão advogar as causas perdidas. A promessa é o próprio livro, um livro muito especial, um dicionário de recordações às vezes vergonhosas, humilhantes. Não se pense, todavia, que se trata de uma confissão, pois a narradora não tem vida própria, apenas sentimentos: As minhas experiências não tiveram importância nem ao longo da vida nem sequer à beira da morte; a vida dos outros, pelo contrária, torna-se minha. Não é uma confissão, mas um relato de memórias de outros.

Perdida no oceano, vendo o navio a afastar-se, decide nadar e enquanto nada, para não se deixar atrair pelo canto de sereia da morte, deixa-se levar por um itinerário de recordações, uma modalidade de resistência ao sono, uma espécie de itinerário que, não sem ironia, também aconselho aos presos, aos doentes que não se conseguem mexer ou os desesperados à beira do suicídio. A memória é então uma modalidade de resistência à inacção e não há maior inacção do que a morte, morte que a cercava por todos os lados e que, segundo uma visão racional, seria mais do que certa. Existe uma confluência salvífica: a intercessão de Santa Rita e o continuado exercício da reminiscência. Essa memória, plasmando a nossa corrente de consciência, é feita de diversas narrativas, algumas mais complexas e com trama romanesca, outras como meros apontamentos, histórias incoadas, mas que não se desenvolvem. Assim, como nos repetimos, também a memória da nadadora à beira da morte se repete, mas ao repetir-se altera ligeiramente o que tinha contado. Um dicionário de recordações, com algumas entradas quase iguais a outras, mas que todas elas poderiam dar lugar a um exercício narrativo mais amplo e complexo, contos, novelas e romances, o que estaria, porém, em contradição com a situação presente daquela que se entrega a essas recordações.

A sucessão de recordações e a luta da protagonista pela vida, que se mistura na narrativa memorial, permitem pensar na relação entre duas instâncias temporais, o passado e o presente. O presente é vivido no fio da navalha, sempre sob a ameaça de haver um corte que impedirá que o futuro se torne presente. O que permite resistir à morte é a reminiscência do passado. O presente é sempre um buraco vazio e precisa de ser preenchido pelos produtos da memória ou da expectativa. Numa situação de morte iminente, a expectativa de um futuro parece impossível e o que pode alimentar e dá combustível à luta do presente é o material proveniente do fundo da memória. A questão, porém, é um pouco mais complexa, pois aquilo que está em jogo não é a aventura vivida no oceano, mas a aventura de escrever e publicar o livro prometido a Santa Rita. Sou analfabeta. Como conseguiria publicar este texto? Que editora o receberia? Creio que seria impossível, a menos que acontecesse um milagre. Acredito em milagres. O perigo não é morrer afogada, desse, de modo inexplicado, ter-se-á livrado, mas o de cumprir a promessa feita a santa Rita, isto é, escrever e publicar o livro.

O que se revela, então, na ficção de Silvina Ocampo é uma analogia entre lutar pela vida em alto-mar e o trabalho de escrever. A arte literária – toda a arte, porventura – é o resultado de uma queda do artista. A escrita é o exercício de natação que o mantém à tona de água e é alimentado pela memória, pelas histórias acumuladas que são um penhor de salvação. O romance é uma meditação sobre a arte romanesca, na qual todo o artista é, em última instância, um analfabeto que tem de recorrer, através de uma promessa, à intercessão de uma santa das causas impossíveis, para que a obra seja realizada e aceite. Toda a obra de arte é uma causa impossível que se tornou possível pelo milagre. Só se torna artista aquele que acredita em milagres, no milagre da sua própria arte que se consuma na obra realizada. Há, no romance de Ocampo, uma fenomenologia da arte literária marcada por três instâncias. A da queda no desejo de criar (em analogia com a queda da amurada do navio), a da promessa que marca o compromisso de escrever (o exercício de natação em alto-mar) e a do milagre da realização da obra (a salvação da morte iminente). São cem páginas de um inteligente jogo de analogias.


quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Julien Gracq, A Costa das Sirtes

 

Publicado em 1951, A Costa das Sirtes (Le Rivages des Syrtes) é o mais conhecido romance do francês Julien Gracq (pseudónimo literário de Louis Poirier). Foi traduzido para português por Pedro Tamen e publicado pela Vega. A primeira edição portuguesa, sem data, está esgotada, mas ainda será possível encontrar a reedição de 1988. O romance valeu ao autor o prémio Goncourt, aliás recusado. O romance escrito numa linguagem que o aproxima da prosa poética é resultado de uma trama onde o destino do indivíduo se entretece com o da comunidade a que pertence. Não estamos perante um herói burguês voltado para a acção triunfal, mas de um aristocrata que encarna o espírito de uma comunidade, cujo desejo inquietante se manifesta no coração de Aldo, o herói e narrador. Num mundo imaginário, dois países – Orsenna, a cidade-estado aristocrática a que pertence Aldo, e Farghestan, a potência bárbara e desconhecido, separados pelo mar das Sirtes – entretêm uma inimizade ancestral, estando em guerra há séculos, mas desde há trezentos anos que não há uma batalha. A guerra parece sempre o destino que espera Orsenna, mas um destino que não se consuma.

Deste destino que não se consuma nasce uma expectativa na própria comunidade. Há todo um comportamento ritual para evitar a deflagração de um conflito com o inimigo de sempre, com os bárbaros do outro lado do mar. A existência de um estado de guerra adormecido, mas continuamente presente, torna-se uma estranha inquietação. No segredo dos corações, há um desejo de afrontar e tornar presente esse destino sempre anunciado e sempre adiado. É neste ambiente que Aldo, cansado do tédio da sua existência na capital, pede para ser incorporado no serviço militar. É enviado como observador, um cargo de acordo com a sua posição social de aristocrata, para as Sirtes, para o Almirantado, onde estão as tropas de Orsenna que têm por missão vigiar o mar e evitar que alguém ultrapasse a linha imaginária que sustenta a paz reinante. A ultrapassagem dessa linha porá fim ao torpor da história. Tanto o edifício do Almirantado como a região vivem numa grande degradação, como se aquela região nos confins de Orsenna tivesse sido abandonada pelo centro, esquecida pelos poderes públicos. É nesse ambiente de desolação que Aldo sente uma atracção pelos mapas da região, o que inquieta o comando do forte, que vê nesse interesse uma ameaça ao status quo.

O tédio de Aldo condu-lo à necessidade de se aventurar para além da linha imaginária que pode conduzir à guerra. Contudo, não é apenas o seu estado de espírito que o move. O encontro com a jovem princesa Vanessa Aldobrandi, cuja família tem um palácio em Maremma, uma espécie de Veneza das Sirtes, uma Veneza degradada, tem um papel fundamental na conduta de Aldo. Ela é uma Eva que tenta aquele Adão, já de si desejoso de ser tentado. A família de Vanessa é vista como tendo, em tempos, estado conluiada com os inimigos de Orsenna, talvez seduzida pela natureza estranha do inimigo. Vanessa traz no sangue essa propensão para o que será uma traição. Também ela não suporta a expectativa, a paz que nunca é uma verdadeira paz alicerçada numa amizade entre ambos os países, mas uma ausência da guerra, que a qualquer momento poderá eclodir. A sedução de Aldo por Vanessa é um elemento central da narrativa de Gracq, embora não seja claro que sem essa sedução Aldo tivesse evitado a aventura que o lea à transgressão da linha imaginária.

É plausível pensar que aquilo que move os dois jovens é diferente. Vanessa age por fidelidade a uma tradição de traição, de aliança, ainda que meramente subjectiva, com o inimigo. Aldo encontra na aventura que desencadeará a guerra que destruirá Orsenna uma forma de dar sentido à sua existência, de o raptar do tédio de uma vida perdida entre prazeres e sem objectivos que não sejam estar vivo e manter a situação tal como está há séculos. A transgressão é uma forma de combater o tédio e dar um sentido à existência do jovem aristocrata. Contudo, a transgressão de Aldo ultrapassa-o, pois ela responde a um silencioso e inquietante desejo de transgressão dos habitantes de Orsenna. A transgressão resulta da incapacidade de viver continuamente numa tensão entre o que existe e aquilo que ameaça vir a existir, mas que adia constantemente a hora da sua manifestação. Na verdade, não é o tédio de Aldo que arrasta Orsenna para a guerra, mas o desejo secreto de guerra existente no coração de Orsenna que se manifesta no tédio e na transgressão de Aldo. Há um desejo de suicídio colectivo. Já ninguém suporta a expectativa, pois o desejo de enfrentar aquilo que está destinado a acontecer tomou conta dos espíritos. O acontecimento apocalíptico que se deseja secretamente é a outra face da revelação do próprio destino da comunidade e dos indivíduos que a compõem.

Julien Gracq refere que o seu objectivo em A Costa das Sirtes não foi contar uma história intemporal, mas destilar aquilo a que chama o “espírito da história”. A estratégia usada para esse destilar do “espírito da história” vive numa tensão tempo e intemporalidade. A linguagem descritiva da paisagem das Sirtes, acentuadamente poética, dá a ver um mundo marcado pelo tempo, um mundo onde as ruínas parecem omnipresentes, mas fá-lo de uma forma tal que esse mundo parece ter sido elevado à condição da imutabilidade. A imutabilidade, a ausência de mudança, é um sintoma da intemporalidade. É nessa aparente intemporalidade que se manifesta o “espírito da história”. A história, sublinha-o Gracq, possui um feitiço oculto, o qual possui a virtude, isto é, o poder de intoxicar. É esta intoxicação que toca os habitantes de Orsenna e anima Aldo na luta contra o tédio. É ela que precipita o inevitável e põe o motor da história a trabalhar. E sempre que se ouve o motor da história rodopiar há uma consumação do destino. Por norma, essa consumação é um desastre, o desastre que de alguma forma se esperava e, no fundo, se desejava.

O romance, publicado como se referiu em 1951, pode ser uma densa meditação a posteriori sobre o destino de uma Europa marcada por duas grandes guerras, É provável que, na época em que surgiu nas livrarias, assim fosse lido. O mais curioso, todavia, é que a sua leitura nesta hora revela uma outra faceta da obra. O que capta o espírito do leitor não é tanto a meditação sobre o passado da Europa, mas o retrato do tempo presente, como se nós, os europeus, fôssemos os habitantes de Orsenna e perante nós se erguesse a imagem de um destino que se teme e ao mesmo tempo se deseja. Também nós temos o nosso Farghestan, com o qual estamos em guerra, apesar da paz aparente em que vivemos. Esperamos apenas o Aldo que encarne o nosso desejo de destino e precipite aquilo que, no fundo, todos sentem como inevitável. A Costa das Sirtes, apesar de escrita há quase 75 anos, parece-nos dirigida. Resta saber se o romance de Gracq nos é dirigido como um aviso ou como uma profecia.