domingo, 26 de fevereiro de 2017

Antonio Skármeta, Um Pai de Filme


Como entrar na pequena novela – talvez, e mais propriamente, um conto – Um Pai de Filme, do chileno Antonio Skármeta? É possível que existam outros caminhos mais rápidos (a história da fuga do pai e do seu reencontro) ou mais pitorescos (a ida do jovem professor primário a um bordel para iniciação sexual – o reitor do liceu também vai às meninas, assegura-lhe o amigo –, a qual pela rapidez com que se consuma permite descobrir os interesses da rapariga pela Geografia), mas o que mais me agrada está plasmado na curtíssimo capítulo quatro. O narrador diz «Em Santiago, pelo contrário, a imprensa publica versos monumentais que aludem à antiguidade grega e romana, cinzelados em mármore, e que meditam sobre a eternidade da beleza». E duas linha mais à frente faz, num pequeno parágrafo, a antítese que estabelece a tensão essencial da narrativa: «Aqui, na província, a beleza nunca é eterna».

A poesia serve aqui de metáfora para a vida. Na capital, Santiago, o mundo é, devido à distância, o supralunar da cosmologia aristotélica: perfeito e eterno. Na aldeia ou na cidade de província mais próxima estamos no mundo sublunar dado à imperfeição e à existência efémera. Esta antítese, contudo, não é o centro da história, mas o horizonte onde ela se move, o enquadramento que permite ao autor focar-se naquilo que é humano e por isso imperfeito, precário, dado à corrupção e ao desaparecimento, mas também a uma certa figuração intemporal.

No hora em que o protagonista desce do comboio, regressado de Santiago e com o diploma de professor, para se instalar na aldeia natal e exercer aí profissão, o pai, francês, sobe para o mesmo comboio para, supostamente, partir para França, deixando a ele e à mãe no desconsolo de uma aldeia perdida na província chilena. Eis a efemeridade da família, símbolo e desígnio de todas as outras. A partir daqui, Skármeta explora as relações de proximidade que se estabelecem naquilo a que se pode chamar um espaço de partilha e de pertença mútua própria dos pequenos universos. O professor e a amargurada mãe (está sempre em convalescença desde a partida do marido), o padeiro – amigo e confidente do pai e iniciador do professor no universo do prostíbulo –, o aluno espigadote (que sonha, aos 15 anos, perder a virgindade e escrever poesia), as irmãs casadoiras do aluno, não menos inquietas do que o irmão, a puta que gostava de Geografia, toda uma paisagem humana que, no que tem de efémero e incompleto, permite esboçar um retrato eterno da condição humana, com os seus desejos, ilusões, decepções, mas também com o que o destino traz de inesperado.

É com esta eternidade nascida do efémero provinciano que a narrativa fecha: «O chefe da estação faz soar o seu apito e confirma pela décima vez no seu pulso que são quatro da tarde e que o relógio do cais de embarque está parado há cinco anos nas três e dez». A reiteração dos gestos e a suspensão do movimento são a eternidade – o mármore – que, a nós pobres provincianos (e quem não o é?), cabe em sorte.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Sándor Márai, As Velas Ardem até ao Fim


As velas ardem até ao fim, romance publicado em 1942 pelo escritor húngaro Sándor Márai, parece uma reflexão sobre a questão colocada por Aristóteles sobre a amizade entre desiguais. Há, subjacente ao pensamento de Aristóteles, a questão da reciprocidade. Para que uma amizade possa subsistir, na sua verdade, é necessária a reciprocidade e esta só pode existir entre iguais.

O romance de Márai é uma longa reflexão sobre a amizade e a sua impossibilidade na desigualdade. O livro é um exercício de rememoração da relação entre Henrik, rico aristocrata e general, e Konrád, proveniente de uma família polaca decadente. A amizade entre ambos começa no início da frequência do colégio militar, por volta dos dez anos, e prolonga-se por mais 22 anos, quando Konrád abandona o exército e, de um dia para o outro, desaparece, instalando-se no Oriente e vagueando pelo mundo.

Passados quarenta e um anos, Konrád regressa ao castelo do amigo para um longo jantar. Um quase monólogo de Henrik apenas entrecortado, aqui e ali, por perguntas ou frases misteriosas do amigo. O monólogo é, em primeiro lugar, a descrição – ou um libelo acusatório – da traição de Konrád à amizade entre ambos. No dia anterior ao desaparecimento de Konrád, este terá sentido um desejo intenso de assassinar o amigo. Além disso,  manteve um caso amoroso com Krisztina, a mulher do General. Konrad nunca desmente as acusações, mas também nunca as confirma, como se tudo aquilo, passado tantos anos, não fizesse já sentido.

A desigualdade entre os amigos – aquilo que supostamente conduziu a traição de Konrád, e esta é mais o seu desaparecimento do que o desejo do homicídio ou o caso amoroso – reside não no destino das duas famílias de origem (uma nobre e pujante e a outra decaída), mas no facto de responderem a ethos diferentes. Henrik é um militar, na linha da velha aristocracia do império austro-húngaro. Konrád, por seu lado, não tem espírito de militar, é meditabundo, com propensão para a música e, ainda por cima, vagamente aparentado com Chopin. A desigualdade dos amigos nasce no ethos  que os anima e dá forma ao carácter, como se entre o dever e a ordem militares e a criação artística, com um princípio de anarquia subjacente, existisse uma incompatibilidade estrutural.

Contudo, deve-se recolocar o romance na sua época. Publicado em 1942, o monólogo rememorativo em que assenta a acção dramática mostra que essa desigualdade pertence a um mundo que já terminou. O confronto entre dois velhos não passa de cinzas de um mundo que ardeu até ao fim na Guerra de 1914-1918. Em 1942, era tempo de outra guerra, mas a única acção possível para homens de mais de 70 anos é a reminiscência ou o silêncio, a constatação da inutilidade de tudo, mesmo do rancor causado por uma amizade traída.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

J. D. Salinger, Franny e Zooey


Franny e Zooey foi originalmente publicado como duas novelas separadas, Franny (1955) e Zooey (1957), na revista New Yorker. Em 1961, são publicadas em conjunto e como um único romance composto por duas partes. [Para uma rápida informação sobre a obra ver aquiaqui e aqui.] É controverso o enfoque dado por Salinger à obra. Múltiplas leituras surgiram, umas acentuando mais o carácter espiritual e religioso, uma espécie de iniciação de Franny à sabedoria, outras acentuando a dimensão de crítica social, um questionamento dos valores hipócritas presentes no mundo cultural norte-americano, tanto na universidade como no mundo do espectáculo, outras ainda sublinhando no texto a projecção das preocupações pessoais do autor.

Qualquer leitor de Franny e Zooey corroborará a presença dos temas sociais e religiosos, pois a referência a eles é constante em toda a obra. A questão, contudo, é a da sua função. Serão as questões religiosas e sociais centrais e temáticas ou apenas instrumentais? Tomadas em si mesmas e na economia do romance, elas são claramente instrumentais. São mobilizadas para contextualizar e articular aquilo que parece ser o tema central da obra, a reconciliação consigo através da aceitação do outro na sua inteira e completa alteridade.

 O encontro de Franny Glass, num restaurante da moda, com o namorado, Lane Coutell - a primeira parte da narrativa ou a primeira novela, na edição do New Yorker - tem como função evidenciar as causas de um sentimento de desagrado com os outros, sintoma de uma não conciliação de Franny consigo mesma. Os professores da universidade, com o seu pedantismo, são a expressão da inautenticidade e do mais puro e refinado egoísmo. Em todas as suas palavras e pensamentos, segundo Franny, ressuma o culto de si. É esta sensação de uma comunicação inautêntica e estratégica que, devido à educação recebida, como se verá na segunda parte, a conduz a uma estranha prática, a Oração de Jesus, inspirada pelo Caminho de um peregrino, uma obra russa do século XIX que narra a viagem de um peregrino, pela Rússia, enquanto praticava a oração. Esta, tal como o peregrino a aprendeu de um staretz, consiste em dizer ininterruptamente "Jesus Cristo Nosso Senhor, tende piedade de nós" até que a frase tome conta de todo o ser e se confunda com a própria respiração. A narrativa de Franny contrapõe a tensão em que esta se encontra com a posição do namorado, alguém que se prepara para ser um universitário tão inautêntico e fechado sobre si como os professores de Franny Glass, completamente concentrado na refeição, enquanto ela lhe ia falando sobre o livro do peregrino russo. O desenlace acontece com o desmaio de Franny e o subsequente colapso nervoso.

A segunda parte da narrativa passa-se em casa dos Glass, para onde Franny voltou à beira da depressão. A forma como Salinger, através dos diálogos entre Zooey e Bessie, respectivamente irmão e mãe de Franny, e entre Zooey e Franny, retrata o ambiente familiar dos Glass merece a maior das atenções. Esses diálogos acabam por fazer jus à própria ambiguidade do nome de família. Glass, ao mesmo tempo vidro e espelho, adequa-se muito bem à falsa transparência dos seus elementos, os quais acabam por ser imagens especulares uns dos outros. É ao manejar com rigorosa mestria a relação de transparência e de espelhamento entre Zooey e Franny, bem como de ambos com outros irmãos, que Salinger conduz Franny à reconciliação consigo, através da aceitação dos outros nas suas particularidades e idiossincrasias, irritantes e falsas que sejam.

As últimas páginas (173-175), de facto, fazem lembrar as histórias Zen, e é através de uma estratégia semelhante que Zooey conduz a irmã à pacificação, como as últimas palavras da obra mostram: Durante uns minutos, antes de cair num sono profundo e plácido, (Franny) ficou imóvel, a sorrir para o tecto (p. 175). Este conjunto de sintomas - sono profundo e plácido, a imobilidade e o sorriso - tornam clara a auto-reconciliação de Franny. Para o conseguir, Zooey lembra um episódio da sua participação no concurso radiofónico Criança Sábia. Um dia, recusou-se a engraxar os sapatos. Contrariado pelo irmão mais velho, Seymour, Zooey argumentou que os espectadores no estúdio eram uns cretinos e, além do mais, ninguém lhe via os sapatos. Mas Seymour foi contundente: "Replicou-me  que os engraxasse na mesma. Que os engraxasse para a Senhora Gorda. Não sabia de que raio é que ele estava a falar, mas pôs aquela cara típica dele e eu obedeci. Nunca me chegou a dizer quem era a Senhora Gorda, mas daí em diante passei a engraxar os sapatos sempre que ia à rádio..." (p. 173).

É na hermenêutica que Zooey faz da Senhora Gorda que ele conduz a irmã a si mesma. A Senhora Gorda são todos aqueles professores pretensiosos e pedantes, são todos os outros que, na sua alteridade, nos irritam com o alardear do seu pretenso egoísmo: "Não há lá ninguém que não seja a Senhora Gorda de Seymour. E isso inclui o teu professor Tupper, companheira. E todas as dúzias de malfadados primos que tenha. Não há ninguém em lado nenhum que não seja a Senhora Gorda de Seymour. Não sabes isso? Ainda não sabes esse terrível segredo? E não sabes, ouve-me bem, não sabes quem é realmente a Senhora Gorda?... Ah, companheira. Ah, companheira. É o Próprio Cristo. O Próprio Cristo, companheira." (p. 174)


A revelação do outro como divino, através de um jogo infantil, que na sua aparente puerilidade lembra o Zen, tem o condão do conduzir Franny a si mesma. A questão social ou mesmo a religiosa, assim, estão longe de ser o cerne da narrativa. O que se joga é o problema da identidade de si, a resposta à questão: quem sou eu? Em Franny e Zooey a descoberta da identidade própria passa pela mediação do outro. Este outro surge de forma ambígua, pois tanto é um outro familiar, o irmão Zooey que emerge como mestre iniciador e revelador do segredo, como um outro radical na sua alteridade, essa Senhora Gorda que não é mais do que o próprio Cristo, ou dito de outra maneira, a própria humanidade. Essa identificação de si na relação com as alteridades passa por um processo de reconciliação consigo mesma, que é ao mesmo tempo um processo de reconhecimento de si e dos outros, um processo iniciático que, ao identificar o indivíduo, o retira do encerramento em si e abre-o para o mistério da presença dos outros na nossa vida.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

J. Rentes de Carvalho, O Rebate


O Rebate é um romance de 1971, de J. Rentes de Carvalho, reeditado em 2012 pela Quetzal. Trata-se de uma descontrução cruel da  mitologia da vida na aldeia, das virtudes do ruralismo tão incensadas pelo regime do Estado Novo. Ao mesmo tempo é uma encenação dos equívocos do reconhecimento de si. O autor explora a tensão entre a comunidade rural, a aldeia, e o emigrante que retorna para sublinhar e ver reconhecido o seu triunfo social em terras de França.

1. Um universo distópico

O paternalismo salazarista - esse prolongamento de uma certa cultura portuguesa bastante antiga - erigiu o mundo rural como arquétipo da bondade, uma espécie de antecipação do paraíso, onde a vida virtuosa dos homens não seria contaminada pelas tentações das metrópoles, esses lugares de perdição por excelência. Rentes de Carvalho, porém, ilumina o espaço rural e permite percebê-lo na sua realidade. A aldeia não é o espaço de uma vida feliz, não é a materialização de uma utopia. De facto, tal como é retratada pelo autor, ela é uma ilha. Ilha significa, contudo, uma espécie de espaço cortado com o mundo que, no seu isolamento, gera um modo de vida absolutamente distópico.

A avidez, a inveja, a vigilância contínua sobre os outros e uma sexualidade recalcada e, ao mesmo tempo, exuberante no seu desejo, tensa nas mitologias que a compõem e lhe dão sentido, criam uma atmosfera opressiva, perversa, onde a iniquidade dos actos é moeda corrente. Sem praticamente referir a situação política do país - há uma alusão na figura do padre que abandona o sacerdócio e que o narrador deixa perceber que talvez existam motivações políticas nesse abandono - a aldeia de O Rebate não é apenas a desconstrução da aldeia mítica da nossa infância, mas também a construção de uma imagem do país, da natureza moral da vida comum, da violência surda, mas activamente presente, que percorre o viver comunitário.

Não há grandeza nas personagens, apenas cálculo de oportunidades, enorme tensão proveniente das paixões comuns dos homens e um exercício contínuo de dissimulação. Nesta ilha rural, a autenticidade das intenções, a veracidade dos actos e a verdade das palavras foram substituídas por uma arte ficcional, cuja finalidade é dissimular, esconder dos outros, abrir o caminho para obter uma vantagem - sexual ou financeira - pela surpresa e pelo engodo. É a este universo cruel e mesquinho que retorna Valadares, o emigrante que acabou por enriquecer em França através do casamento com uma francesa.

2. Os equívocos do reconhecimento

Rico e casado, Valadares retorna para a festa da aldeia em busca do reconhecimento de si e do seu triunfo. Volta para resgatar a derrota social de ter de emigrar, de ter de ir buscar fora da aldeia os bens materiais que, eventualmente, lhe assegurariam a admiração da comunidade e a prestação de vassalagem que o dinheiro deveria trazer consigo. Também o retrato de Valadares é cruel. A emigração e o triunfo social não representam qualquer transformação interior. O universo que o move é o mesmo que tinha à partida, o desejo que o empurra para a aldeia não é diferente daquele que o levou a partir. Ser um entre os outros, ser como os outros, embora mais importante, porque mais rico, que os outros.

Em França aconteceram-lhe coisas - um casamento com uma rapariga estouvada, segundo os modelos da aldeia, arquitectado pelo sogro, e com esse casamento veio o dinheiro - das quais não foi efectivo protagonista e que não tiveram impacto interior, não mudaram a sua forma de ver o mundo, não o libertaram das pequenas mitologias aldeãs com que tinha crescido. É este casal inesperado que é transportado para o universo fechado da aldeia transmontana. Ela vinda de um mundo radicalmente diferente, um mundo que não lhe permite sequer compreender a natureza daquele onde cai. Ele persistindo no que era, trazendo apenas apontamentos dessa vida em França não como manifestação de uma mudança de si, mas como forma de sublinhar a sua nova importância no universo social da aldeia.

A estranheza de Louise, a mulher de Valadares, e a riqueza e pretensões deste vão chocar com o mundo organizado e estruturado da aldeia. A dissonância do casal não conduz à interrogação das consciências e à confrontação com outras formas de habitar o mundo, mas ao exacerbar das atitudes arcaicas e ao reafirmar das práticas perversas que confirmam a solidez da identidade cultural daquela comunidade. A cena da explosão do cio colectivo provocada por Louise ilumina essa perversa solidez identitária. A fuga do casal, envolto no mais puro ridículo, é o resultado final a que conduziu a equívoca busca de reconhecimento do pobre emigrante, daquele que, apesar de algumas aparências diferentes, se mantém estruturalmente fiel ao universo de onde partiu, universo que, contudo, já não o aceita. Abel Valadares é uma figuração de uma demanda de si condenada ao fracasso, pois baseada apenas em factores de ordem social e no retocar da máscara. Retocada esta com elementos estranhos, a comunidade apenas detecta a dissonância e, movida pela sua natureza cruel e impiedosa, pulveriza as pobres pretensões do emigrante bem sucedido.

3. Uma visão de Portugal

Quem conhecer um pouco da História de Portugal não pode deixar de estabelecer uma curiosa analogia entre o casal Valadares e a história dos estrangeirados na cultura portuguesa. De tempos a tempos, a natureza castiça da nossa cultura - científica ou literária - era desafiada pelos chamados estrangeirados. Estes traziam uma novidade, mas esta caía num meio que em vez de ver nela um desafio que propunha renovação e metamorfose, apenas procurava assimilá-la de forma a que não alterasse o fundo do casticismo vigente. De certa forma, Louise é essa imagem de uma novidade desafiante ao nível dos costumes e da economia do desejo. A forma como foi acolhida é uma bela alegoria das dificuldades que, durante muitos séculos, teve a cultura portuguesa de dialogar com o universal proveniente de outras paragens.

O Portugal de O Rebate vem na continuidade do Portugal de A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz. Onde, todavia, Eça mitifica e prodigaliza de virtudes essa cultura particular e castiça, Rentes de Carvalho desconstrói e manifesta a sua natureza distópica e totalitária. Esse Portugal ruralizado não é apenas um país tecnologicamente atrasado, mas um universo mesquinho, cruel e doentio. O Rebate é, em última análise, o diagnóstico, com a crua exposição dos sintomas, de uma doença que corrói o país.

Fará ainda sentido, passados 40 anos da publicação original e com as transformações sociais e políticas que ocorreram, ler Portugal através desta obra? Se se abandonar a descrição totalitária e nos concentrarmos na natureza da cultura, descobrimos que, para lá do verniz que os mass media e a integração na União Europeia trouxeram, dificilmente se deixa de ser aquilo que se é. Os campos despovoaram-se, as cidades encheram-se, bem como as escolas e as universidades. Isso significa, porém, que o campo invadiu a cidade, tomou conta das escolas e transformou a universidade naquilo que se vê nas Queimas das Fitas, nos espectáculos de música pimba que tanto alegram os nossos estudantes e nas monumentais bebedeiras a que se entregam. A aldeia desapareceu para invadir tudo e de tudo tomar conta. A dinâmica da perversidade que Rentes de Carvalho retratou disseminou-se e age difusamente até naqueles sítios onde a imparcialidade e a universalidade deveriam ser a pedra-de-toque.