segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Han Kang, A Vegetariana


Quando se lê uma obra, lemo-la sempre a partir de tudo o que lemos anteriormente. Não há leitura que seja despida de um certo enviesamento trazido pela nossa história de leitores, para não falar da própria história existencial. Ao acabar de ler o surpreendente romance A Vegetariana, da escritora sul-coreana Han Kang, vencedor do Man Booker International Prize, de 2016 (edição original na Coreia do Sul em 2007), perguntei-me que autores me estariam a ajudar a enquadrar a visceralidade da meditação sobre o desenraizamento do indivíduo trazida pela obra de Han Kang. Acabei por juntar uma dupla referência. Por um lado, o filósofo francês René Descartes e, por outro, o escritor checo Franz Kafka e a sua obra A Metamorfose. De facto,  A Vegetariana é a descrição da metamorfose onírica da protagonista, Yŏnghye, em árvore. É aqui que entronca a referência a Descartes e à impossibilidade que temos de distinguir claramente o estado de vigília do sonho. Tudo começa com um sonho e acaba como se a própria Yŏnghye tivesse sido arrastada para dentro de um estado onírico de onde não consegue sair.

A descrição da heroína, feita pelo marido na primeira parte (seria melhor dizer primeiro andamento) da obra, mostra-nos uma mulher absolutamente banal, sem qualquer paixão, mas também sem qualquer perturbação. Ele casou com ela porque, sendo ele também completamente banal e medíocre, ela era a mulher que lhe convinha. A trivialidade da vida quotidiana é suspensa quando ele a descobre, uma noite, frente ao frigorífico a despejar todos os produtos de origem animal. Um sonho terrível atormentou-a de tal maneira que a única saída que encontrou foi tornar-se irredutivelmente vegetariana. Um sonho expulsa-a da vida comum e vai expô-la a toda a violência que se esconde na família enquanto instituição. Culmina com uma tentativa de suicídio e o abandono do marido. A opção pelo vegetarianismo serve para tornar claro que o casamento era uma falsificação assim como a família, de onde provinha, tinha as suas raízes na violência do pai, como se tornou a manifestar no episódio que conduz à tentativa de suicídio. A violência do real e o desenraizamento existencial abrem as portas para a transição de Yŏnghye para o mundo da fantasia e para a dimensão onírica.

A segunda parte da obra gira em torno da obsessão sexual do marido da irmã de Yŏnghye, por esta. O cunhado é um artista sem sucesso que trabalha em pequenos vídeos e que procura uma saída para a sua carreira de artista. O desejo erótico, contaminado pela preocupação estética, é mediado por uma coreografia de motivos vegetais, fundados na mancha mongólica de Yŏnghye. Quer pintar o corpo da cunhada com flores, o que ela aceita, e encontrar alguém que, pintado da mesma maneira, contracene com ela, enquanto ele filma. O escolhido aceita mas quando lhe é pedido para passar de cenas eróticas simuladas para uma penetração real, recusa. Então o cunhado tenta fazer amor com Yŏnghye, mas esta não o aceita, pois não se encontra pintado. Se se pintar com os mesmo motivos vegetais, ela acederá aos seus desejos. O que acaba por acontecer no apartamento de Yŏnghye. O erotismo e o sexo carnal já só são possíveis no âmbito vegetal, no abraço de duas plantas. À recusa da carne como alimento sucede a metamorfose da sexualidade que transita do âmbito da carne para o domínio vegetal. Descobertos e denunciados pela irmã de Yŏnghye, são ambos internados num hospício, de onde ele rapidamente sai, mas onde ela, acentuado o desenraizamento, é sugada para dentro de um mundo onírico de onde não sairá.

A terceira e última parte torna patente a violência inerente às instituições psiquiátricas. Esta violência e a atenção da irmã – onde se vai formando a culpa por ter colocado ali Yŏnghye, talvez para se salvar a si mesma de um tal destino – são o enquadramento final da metamorfose. A heroína julga-se árvore e as árvores não comem, apenas são regadas. Ela é agora uma árvores exilada da floresta. O resultado é a intensificação do estado de anorexia, com a recusa de toda e qualquer alimentação e as múltiplas tentativas de a forçarem a alimentar-se, tentativas onde a violência é o eixo central. Incapazes de a alimentarem, transferem-na para um hospital comum. É na ambulância que a irmã, Inhye, lhe segreda que tudo o que se tem passado talvez não seja mais do que um sonho.

A impossibilidade cartesiana de distinguir claramente entre sonho e realidade surge assim como o horizonte de uma metamorfose do self. Não se trata aqui de uma transformação que permita o acesso a um ponto de vista superior e mais integral sobre si e o mundo. Como em Kafka trata-se de uma transferência para uma outra ordem de existência já não humana. No sonho, contrariamente ao lugar comum, dissolve-se a humanidade, transformando-se o indivíduo num ser vegetal, numa árvore. Esta metamorfose, porém, é um sintoma terrível das sociedades humanas. Ser árvore é procurar um enraizamento fundo na terra. É isso que a desenraizada Yŏnghye, perdida no mundo do sonho, procura. Deste ponto de vista, o romance de Han Kang é uma meditação, escorada numa metamorfose onírica, sobre o desenraizamento que grassa nas sociedades modernas, nas sociedades que perderam a ligação com a tradição e a natureza.

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